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Israel: A Liturgia do Sangue Alheio

Abramos, pois, o Grande Livro de Horas do Ocidente Contemporâneo. Viramos a página dourada, pesada como a culpa que recusamos carregar, e eis a liturgia do dia: a “Compaixão Selectiva” com Israel. O cântico entoa-se em uníssono, dos salões brumosos de Bruxelas aos estúdios luminosos de Manhattan, uma ladainha monocórdica: Pobres Israelitas!. Os ataques do Irão, o martírio “auto-infligido” sobre Gaza transformada em necrotério a céu aberto, as escaramuças no Líbano, os avisos ao Iémen – cada explosão, cada vida obliterada (crianças palestinas contam como fracções, não é?), serve apenas para apertar mais o laço retórico da nossa solidariedade incondicional. Para com um só lado, claro.

A narrativa oficial, essa engrenagem bem oleada da Realpolitik disfarçada de moral, assenta sobre um alicerce de uma simplicidade bíblica: do Outro Lado, ergue-se o Espectro do Profeta. Maomé. Figura histórica, tangível, cujas pegadas na areia do tempo são, diga-se, bastante mais nítidas que as dos seus antecessores abraâmicos, cuja existência terrena flutua num limbo entre o mito fundador e a fé cega.

Eis a pergunta que paira, mais ácida que vinagre num dia de jejum forçado: porque diabo – e já nos asseguraram, com a solenidade de quem vende seguros de vida em zona de guerra, que o diabo era uma fantasia – nos alinhamos, dóceis ovelhas do rebanho atlântico, com um Estado beligerante forjado nas fornalhas do pós-1945? Uma entidade nascida como compensação das atrocidades cometidas pela extrema-direita fascista de Hitler, sim, mas que parece ter aprendido a lição errada do manual do opressor. Defendemos, com unhas e dentes retóricos, quem transformou Gaza num laboratório de morte, ceifando 55 mil vidas (número provisório, a conta aumenta a cada oração nocturna), quem elimina cientistas como se fossem baratas sob o tacão da sua Mossad omnipresente? Pela mesma lógica torcida, deveríamos saudar a Rússia de Putin como campeã da ordem, venerar a América acéfala de Trump como farol da democracia, e talvez erguer estátuas a Estaline, esse Gandhi de encomenda, pelo seu peculiar contributo para a “paz” eugénica.

O mundo hipócrita! Esse mestre-de-cerimónias do cinismo global. Enquanto nós, plebe distraída, nos afogamos no pântano reconfortante das séries Netflix — narrativas limpas, conflitos resolvidos em 50 minutos com intervalo para pipocas — ou nos perdemos nos labirintos porno-eróticos do V+ (onde o único sofrimento é fingido e bem remunerado), ele opera. Mata a esmo. Mata enquanto carregamos no botão “comprar agora” da Primark ou da Shein, vestindo-nos, literalmente, com o suor e o sangue de origens tão duvidosas como a nossa própria consciência. É o nosso «Estranho Mundo Novo», não o de Huxley, mas uma versão low-cost e brutalmente real. Cantamos, desgrenhados de falsa alegria, nos festivais de Verão, embebedamo-nos de luzes estroboscópicas e esquecimento voluntário. E marimbamo-nos, é claro. Com a perícia de um funâmbulo bêbado, equilibramo-nos sobre o abismo, entoando o mantra do “não quero saber”.

Cada “like” numa notícia truncada, cada partilha de hashtag vazia, cada olhar desviado para o próximo episódio, é um grão de areia no relógio da nossa própria irrelevância moral. Solidariedade? Tornou-se um produto, distribuído conforme as coordenadas geopolíticas e o medo ancestral do “Islão”. A compaixão, essa, ficou perdida algures entre o carrinho de compras online e o spoiler da temporada final. Resta-nos a liturgia. O cântico vazio. E o sangue, sempre o sangue, a escorrer silenciosamente para debaixo do tapete do nosso conforto criminoso. Talvez, apenas talvez, um dia a conta chegue. Com juros. Históricos.

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Joao Vasco Almeida
Joao Vasco Almeida
Jornalista 2554, autor de obras de ficção e humor, radialista, compositor, ‘blogger’,' vlogger' e produtor. Agricultor devido às sobreirinhas.

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