Há datas que não são dias. São farsa litúrgica. Feriado com verniz de bronze oxidado. O 10 de Junho é uma delas — esse monumento à insinceridade pátria, decorado com Camões de gesso e bandeirinhas a cheirar a sardinha digitalizada. Supostamente celebra Portugal. Na prática, é um arraial emocional onde se homenageia tudo e não se entende nada. Começou com um almoço. Acabou em hino.
D. Luís, rei de versos sem rima e ideias com fome, teve o rasgo de convidar o povo para uma comidinha patriótica. Um banquete simbólico: sopa, pão e retórica. A ideia não era má — má foi a digestão posterior. Os republicanos, já com Camões ao colo e cartazes a preceito, aproveitaram a data para treinar o que proclamariam em 1910: uma República com tiques imperiais e alergia a datas que não tivessem cheiro a sangue fresco ou bustos de bronze barato.
A ironia final foi bordada por Salazar, esse bordador da mentira com linha de sisal. Em 1933, bordejando o fascismo europeu com zelo paroquial, decide fazer do 10 de Junho o “Dia da Raça”. Como se Portugal fosse um canil com pedigree. Chamou-lhe raça, mas queria dizer silêncio. Queria dizer “marcha direita e não olhes para o Tejo”. Era a mística da pureza sem pureza nenhuma — uma alquimia invertida, como se fosse possível extrair ouro de um discurso do Padre António Vieira lido ao contrário.
E o mais incrível é que resultou. A ideia de que há um “ser português” distinto, coeso, homogéneo — como se o tipo que nasceu em Bragança fosse irmão espiritual da senhora da Cova da Piedade — infiltrou-se nos compêndios, nas escolas e até nos brindes da Feira Popular. Somos uma “raça”? Pois claro. Rafeiros místicos, se muito. Com ascendência cruzada entre o sarcasmo galego, o melancólico magrebino e o entusiasmo lisboeta pela fila para tudo.
Mas ninguém teve a coragem de puxar o tapete. Nem o doutor Cavaco, o Aníbal I, o Inútil e imperador do Cavaquistão. Um império que durou vinte anos, dois telejornais e trinta e sete discursos que pareciam cópias uns dos outros, fotocopiados em papel hóstia. Saiu ele, entrou a segunda república sem-nome, mas o feriado ficou. Porque mudar o Dia de Portugal seria admitir que Portugal tem história — e não apenas calendário.
O verdadeiro dia, se é que se quer um, não tem versos nem bandeiras. Tem assinatura: o Tratado de Zamora, 5 de Outubro de 1143. Nesse dia, D. Afonso Henriques deixou de ser condado e passou a ser complexo de grandeza. Mas azar dos azares, foi também o dia da
República, versão 1910. E Salazar, com o seu gosto por datas sem ressonância, preferiu exumar Camões a celebrar a perda da monarquia. Estratégico como um lagarto ao sol.
Desde então, vivemos este feriado esquizofrénico. Onde se fingem cerimónias de Estado e se empurram veteranos de guerra em cadeiras de rodas ao som de hinos tristes. Tudo transmitido em directo, entre um discurso sobre “os jovens” e a meteorologia para emigrantes. Nada disto é Portugal. É apenas o reflexo baço de um espelho partido que insiste em mostrar-nos o perfil.
E se alguém pergunta se devemos mudar o dia, a resposta devia ser simples: claro. Devíamos mudar o dia, o nome, o hino e a ideia absurda de que um país se resume a um calendário com lombadas. Mas não o faremos. Porque fingir é confortável. E Portugal é o país da almofada emocional — onde se dorme sobre mentiras desde 1139.
No fim, resta um feriado. Um intervalo. Uma pausa no teatro nacional, entre dois actos de telenovela institucional. Mas há uma beleza trágica nisto tudo: talvez, ao celebrarmos um dia mentiroso, estejamos finalmente a ser honestos. E isso, para um país como o nosso, já é quase uma revolução.