Na minha vida, há lugares e pessoas que nunca esqueci. Já não sou o mesmo e esses lugares e pessoas também estarão diferentes, quem sabe irreconhecíveis. Talvez já nem permaneçam ou, pelo contrário, mantenham o fascínio com que na altura me prenderam. Amigos, lugares, amores que mantenho vivos, uns mais marcantes que outros, eternamente dentro de mim. E tu és um deles, as memórias que conservo não perdem significado com o passar do tempo.
Esta (apressada) tradução do tema In My Life dos Beatles (há uma outra tradução, muito livre, de Rita Lee) sempre me cativou e fez sonhar, tornando-me, aos 13 anos de idade, “amante” e mesmo colecionador de discos da banda. Ajudou-me a ter uma primeira noção da inconsistência da vida, recolhendo do passado imagens que apontam à finitude do futuro. Foi amiga próxima que, ao saber do meu aniversário e conhecendo-me há muito, relembrou o tema When I`m Sixty Four, levando-nos a discorrer sobre a forma como reagimos perante o avanço da idade. Sim, 64 era lá longe… agora já temos de olhar para trás!
Os Beatles acabaram em 10 de abril de 1970. Escrevo esta crónica exatamente 55 anos depois.
Dificilmente alguém com mais, sei lá, de 15 anos, não saiba quem foram os Beatles, “tipo Ronaldos imediatamente identificados em todo o mundo”! E não é por acaso que isso acontece, antes reflete o génio musical de três dos seus membros e, principalmente, o facto de cada um ter traduzido algo original às composições. John Lennon denunciou a guerra e lutou pela paz com arranjos agrestes, George Harrison transportou-nos para sons longínquos, exóticos e místicos, Paul Macartney explorou harmonias e melodias de encantar, mesmo Ringo Star não se limitou a fazer número, antes funcionou como “cola” perante as naturais desavenças, adiando a separação. Abriram portas e prepararam a música popular futura, variando estilos e introduzindo técnicas de programação informática, utilizaram novos instrumentos, trouxeram sonoridades de outras culturas e arriscaram arranjos revolucionários, sempre apoiados pelo produtor musical, arranjador, compositor, engenheiro sonoro, músico e maestro britânico George Martin. Martin colocou todas aquelas energias num saco, abanou, misturou, e saíram clássicos como Yesterday ou Let it Be, hinos como Revolution ou Here Comes de Sun, estranhezas como Tomorrow Never Knows ou I Want You (she’s so heavy), pérolas como Golden Slumbers ou I Will,
temas épicos como While My Guitar Gently Weeps ou Come Together, estilhaços como Her Majesty ou Dig It.
O radialista Rui Portulez lembrou que não podem ser esquecidas excelentes versões de temas dos Beatles, realçando Hapiness is a Warm Gun, dos Breeders.
Tony Craveiro Lopes juntou Joe Cocker e With a Little Help From My Friends. O ex radialista e atualmente professor de música Nuno Silveira Ramos até sublinhou existirem diversas versões técnica e esteticamente melhores que os originais, como The long and Winding Road de George Benson. Eu não posso esquecer a eléctrica Day Tripper criada por Jimmie Hendrix. A listagem é infindável.
Lembre-se que a década de 60 revolucionou não apenas a música mas a própria sociedade em geral, com movimentos contra a guerra do Vietnam e pela igualdade social, coexistindo com cenas psicadélicas. Acresce que, a partir dos anos 50, os jovens passaram a ser vistos como tendo identidade e interesses próprios, diferenciando-se claramente dos adultos, para isso muito contribuindo a irreverência do Rock and Roll e do jazistico BeBop, condição que se foi consolidando na década seguinte. Todavia o Rock and Roll, estilo musical de base essencialmente negra e que denunciava o racismo, foi gradualmente sendo absorvido pelas editoras “certinhas”, que condicionavam as letras e os interpretes, de que é exemplo o
sucesso de Elvis Presley (Pelvis): a denuncia racial era substituída pelo erotismo em palco. Paralelamente foram surgindo novos estilos, como o Twist e o Yé Yé, bem como canções “delicodoçes” francesas e italianas. De toda esta amálgama do pós guerra surgiram os conjuntos Pop/ Rock.
Curiosamente, nos primeiros tempos deste emergente som mestiço, mistura de estios negros e brancos, existia uma certa concorrência entre os novos interpretes: Rolling Stones (soul), Beatles (pop/rock) e Shadows (instrumentais com viola a liderar – Olá Zé Pino) representavam visões musicais diferentes, com os chamados Baby booms a disputarem preferências. Posteriormente foram-se multiplicando bandas de culto, com som muito próprio como os Velvet Underground e os Doors, mas isso é outra história. Hoje em dia esses nichos estão atenuados, tal a variedade e quantidade de bandas que proliferam, na sua maioria com existência efémera.
Aproveitei In My Life para voar sobre os diversos álbuns e singles, relembrando músicas que me foram acompanhado desde sempre, algumas a que ainda agora recorro quando a disposição aponta para isso. Conheço todos os temas que gravaram, repetidamente os ouvi, apesar de nunca deixar de procurar outras atmosferas, timbres e melodias. Mantêm-se meus companheiros nos momentos bons e maus, carreguei os vinis para Luanda e Macau, ida e volta…
Foi com I`m So Happy Just To Dance With You que pela primeira vez senti o ritmo da dança invadir-me, como nunca acontecera antes. Se estou cansado, ainda me apetece ouvir I`m So Tire, como se o tema servisse de apoio e companhia. Senti a primeira atração pela Índia quando George Harrison me mostrou esses sons mágicos em The Inner Light. Em 1968, temas como Hey Jude e Michelle faziam parte do repertório dos Windies.
Celebrámos as Ukrain girls quando, no Raide Macau-Lisboa, entrámos nessa república agora tão conturbada, cantando Back in the USSR. Não me canso de ouvir o Lado B de Abbey Road, acho fenomenal do principio ao fim.
Depois dos percursores Pink Floyd com Syd Barret e 13th Floor Elevators em 1965, o álbum de 1966 Revolver, Sgt Pepers Lonely Hearts Club Band em 1967 e o filme Magical Mystery Tour em 1967, “ajudaram em muitas viagens astrais”, como diz um músico amigo.
Fiz uma pequena experiência entre os meus contactos, que abrangem diversos países e idades (maravilhas da Internet), e todos indicaram um tema e explicaram a razão, abrangendo peças que atravessam todos os dez anos de existência do grupo, de Love Me Do a Get Back, passando por A Day in The Life, Eleonor Rugby e muitos outros sucessos, a que se junta Now and Then, gravado “artificialmente” em 2023.
Continuarei atento a outros mundos de Dionísio e Apolo, mas nos Beatles continua a haver muita loucura e arte para descobrir. Os Beatles acabaram? Vivam os Beatles! Here, There and Everywhere