Se os avós da nação se desdobravam em fados de amor ciumento e os pais da Geração X trocavam beijos ao som dos Xutos & Pontapés — “Homem do Leme” a navegar mares de liberdade pós-25 de Abril —, os jovens de hoje parecem preferir o remix: deslize à direita para o amor, à esquerda para o respeito. Segundo dados recentes, um em cada 17 alunos confessa ter sofrido intimidação, e 1,2 por cento assume ser agressor. Mas o verdadeiro sucesso do verão é a violência no namoro, agora normalizada como se fosse um valor e não um crime.
A culpa, dizem os especialistas de café (com cheirinho a cimbalino e a preconceito), é da Internet: os chats de voz transformaram-se em tribunais de moralidade duvidosa, e a rede social de vídeos curtos Tik Tok em escola de etiqueta amorosa. Enquanto a Geração X abraçava a liberdade como uma personagem de Saramago em Ensaio sobre a Cegueira — tropeçando em ideais sem os ver —, os seus filhos aprenderam que amar é controlar a presença virtual do parceiro. “Se não responde em cinco minutos, é traição”, cantarolam, numa versão moderna do fado Povo Que Levas no Rio, com tarados sexuais e de controlo.
É, assim, o deserto dos Humanos, mas com internet sem fios. Parece não haver salvação. As escolas, outrora templos de saber, hoje são arenas de intimidação onde professores, mais perdidos que Álvaro de Campos no Livro do Desassossego, tentam ensinar empatia entre publicações no Instagram. Os pais, entretidos a partilhar imagens engraçadas no Facebook, delegaram a educação moral aos influenciadores — que, por sua vez, ensinam que o “amor verdadeiro” é uma transmissão ao vivo com filtro de coração.
Até a cultura popular se rendeu: já não são precisos ciúmes à la Carmen Miranda, bastam mensagens crípticas num aplicativo: “Se me bloqueias no WhatsApp, desbloqueias o meu coração”, dizem os jovens, numa lógica que faria Eça de Queirós rolar no túmulo. Até os ex-libris trocaram as caravelas por mensagens privadas agressivas: “Navegar é preciso, vigiar a tua publicação, o teu telefone e filmar-te às escondidas, também”.
E assim caminhamos rumo a um futuro onde o “sim” se efectiva com um simples toque sem consentimento, e o “não” é uma falha a corrigir. A Geração X, esse “bando de janados” (como lhes chamaria o Zé do Telhado), orgulha-se de ter sido livre, mas esqueceu-se de ensinar que liberdade sem ética é como um pastel de nata sem canela: doce, mas vazio. Estamos, então, na revolução da boa educação mundana e digital.
Mas eis a reviravolta, digna de um episódio de Conta-me Como Foi, escrito por Mário de Carvalho: os jovens, afinal, não estão tão perdidos quanto pintam. Enquanto os pais se queixam na rede de microblogues, eles organizam petições online contra a violência no namoro. Enquanto a escola debatia teorias, estes criavam grupos de apoio numa plataforma na rede. E quando a Internet ou os namorados lhes deu porrada, eles devolveram com campanhas de #RespeitoNãoCustaNada.
Sim, a Geração X pode ter falhado em transmitir humanismo, mas os miúdos, astutos como o diabo a fugir da cruz, aprenderam sozinhos — com a ajuda do Google e de uma ou duas coisas no Youtube. Mas alguns ainda se confundem: o amor é com controle, e quem tem ética não vai a Roma.
Num mundo onde até Saramago seria influenciador (imaginem as suas mensagens cáusticas), a esperança renasce. A mesma Internet que ensinou o ódio, agora espalha abraços virtuais. A mesma escola que falhou, vê alunos a dar lições de civismo. E a Geração X, afinal, pode orgulhar-se: criou rebeldes com causa, que usam ícones de coração para combater a pancadaria.
Terminemos como começámos: com um fado. Se Amália cantava “Estranha Forma de Vida”, os jovens de hoje entoam “Estranha Forma de Amor” — cheia de dados e contradições. Se há lição a reter, é esta: até na era da intimidação virtual, o amor (e a ironia) resistem. E se a Geração X foi um farol apagado, os miúdos, esses, trouxeram pilhas. De lítio, claro. Porque o futuro, caro leitor, será feliz — mas só se rirmos dele primeiro.