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A Revolução do Bom Senso

A trajetória é clara e não pode deixar dúvidas a ninguém: se nada de essencial for feito, as forças autocráticas, reacionárias e opressoras tomarão, a prazo, o poder pela via democrática e concretizarão a sua agenda autoritária e ultraconservadora, destruindo a democracia. O tempo político de hoje é assustadoramente semelhante ao vivido há cerca de um século no centro da Europa, o qual precedeu a deflagração da Segunda Guerra Mundial. Será a democracia capaz de se defender? O que está a alimentar o crescimento das forças populistas e extremistas, e a ameaçar a democracia?

A explicação parece ser – como geralmente é – multifatorial. Ou seja, há certamente gatilhos (triggers) que espoletam esse crescimento – com diferentes graus de determinância – mas nada indica que haja apenas um fator decisivo (“killer factor” ou “bala de prata”). Entre eles, poderá estar um receio de insegurança e do que possa reservar o futuro, uma necessidade de ordem, equidade e justiça social, um custo insuportável de transformação e progresso, uma estranheza face à diversidade étnico-cultural (posta em contacto), ou, de forma mais geral, uma mudança de ciclo civilizacional (médio ou longo) e uma reação à negação, ao vazio e à incerteza criadas pelo pós-modernismo.

Este período histórico sucedeu à segunda guerra mundial, caracterizado pela crítica do modernismo e por mudanças significativas nas áreas da filosofia, artes, ciências e tecnologia, designadamente no questionamento da razão e do progresso, na valorização da subjetividade e da fragmentação, na desconfiança nas grandes narrativas, na reciclagem do passado e apropriação de estilos e temas da alta e baixa cultura, e no relativismo e ironia. Há quem situe o “wokismo” – da palavra ‘woke (acordado) – neste amplo movimento.

Este termo surgiu na comunidade afro-americana dos EUA nos anos 60 do século passado, para destacar a necessidade de estar consciente das injustiças raciais. Cooptado pela comunidade universitária a partir da década de 70, ele acabou por ser associado, de forma pejorativa, aos excessos de ativismo, liberdade e linguagem de grupos de interesse, de narrativas opostas à lógica e ao bom senso, e de determinadas agendas feministas, sexistas, climatistas, globalistas e animalistas, entre outras percebidas como extremistas.

Disseminando-se e impondo-se em segmentos significativas da sociedade, por via facilitada das redes sociais, o “wokismo” caraterizou-se pelo “tiro” às normas e convenções sociais – e outras expressões e registos do passado – manifestamente o seu “desporto” preferido. Nesta perspetiva, tudo é permitido e qualquer ordem supraindividual (ou supragrupal) – terrena ou divina – rejeitada. Está na cara que o senso-comum diluiu-se e o bom-senso esfumou-se, passando a exigir-se uma Revolução do Senso Comum e/ou do Bom Senso. Não significando a mesma coisa, estão interligadas.

Enquanto o Bom Senso é definido como o “equilíbrio nas decisões ou nos julgamentos em cada situação que se apresenta”, o Senso Comum significa o “conjunto de opiniões ou ideias que são geralmente aceites numa época e num local determinados” (Dicionário Priberam). Ser equilibrado e ser aceite não é, evidentemente, o mesmo, embora sejam ambos desejados (digo eu) por todos aqueles que rejeitam o extremismo e defendem soluções equilibradas, aceites pela maioria. Donald Trump defendeu em janeiro p.p., no seu discurso de tomada de posse, uma Revolução do Senso Comum (RSC). Qual o seu propósito?

A ideia não nasceu de Trump, apenas foi por ele apropriada (provavelmente por inspiração do panfleto “Senso Comum” de Thomas Paine) – por mera questão de… bom senso – e convenientemente instrumentalizada. Não são poucos, nem apenas os cidadãos de “direita” (ou de “esquerda”) que consideram que o mundo, em especial o ocidente democrático, sofre há várias décadas de uma “crise de realidade”, a partir da qual – e recorrendo a métodos radicais ou mesmo extremistas – se pretende criar um fantasioso modelo de sociedade, incompatível com os princípios e valores éticos e morais que a formaram.

As linhas de tendência são duas e, se não se alimentam mutuamente, parece que a primeira alimenta e fortalece mais a segunda do que o contrário. Refiro-me à cultura ‘woke’ – colada à extrema-esquerda – e às ‘fake news’ – imputadas sobretudo à extrema-direita. Aliadas a interesses políticos e de poder, as dinâmicas criadas fortaleceram determinados grupos minoritários, orientados por agendas totalitárias, num ciclo perverso que tem vindo a obliterar a liberdade de expressão e a intimidar o pensamento crítico e independente. A ordem e a verdade parecem ter-se transformado em “personae non gratae” na narrativa que sustenta a desordem e a mentira vigentes.

O senso comum tem uma história desde os gregos e escritores dos séculos XVII e XVIII até pensadores do século XX, como a filósofa germano-americana Hannah Arendt. Thomas Paine, um indivíduo fascinante, escreveu e publicou anonimamente, em 1776, o panfleto “Senso Comum”, o qual inspirou a Revolução Americana. O autor, filósofo político de origem inglesa, “pai fundador” dos EUA e ativista revolucionário em França e Inglaterra, advogava a independência da colónia britânica e a implantação de um sistema de governo igualitário, com base em argumentos políticos, morais e religiosos, apelando ao senso comum e à liberdade.

A ideia do senso comum está também presente em Ayn Rand (1905-1981), filósofa do objetivismo e polémica autora do clássico “A Revolta de Atlas”, um livro maldito para a “esquerda” por ser considerado a “bíblia” do neoliberalismo. Rand afirmou que “pode-se ignorar a realidade, mas não se pode ignorar as consequências de ignorar

a realidade”. Fundamental, para ela, é que a sociedade descubra os “intrigantes eventos que causam a desordem na vida das pessoas” e busque um caminho para a justiça e tolerância, respeitando as escolhas individuais e protegendo os mais vulneráveis, sem cair em extremismos que possam comprometer a coesão social.

Há muito que se destacam duas ênfases contrastantes na ideia do senso comum: uma posição que questiona as normas vigentes e outra que as reforça. O senso comum, como estratégia política, nem sempre esteve alinhado com uma economia de mercado livre. Nas últimas décadas, a expressão Revolução do Senso Comum passou a ser utilizada para descrever plataformas de natureza marcadamente neoliberal – inspiradas nas políticas de Margaret Thatcher e Ronald Reagan durante a década de 80 – tendo por objetivo baixar os impostos e equilibrar o orçamento, reduzir a dimensão e o papel do Estado, e reforçar a responsabilidade económica individual dos cidadãos.

A RSC é, hoje, uma expressão usada para descrever um período de mudança, seja para defender um retorno a valores e práticas mais conservadores e populistas, seja para rejeitar políticas consideradas extremas ou irracionais, implicando uma mudança de rumo, um retorno à estabilidade e à racionalidade. É esta, obviamente, a perspetiva que deve interessar. E quanto a Trump e seus seguidores, é notória a contradição entre o que defendem e aquilo que praticam, exceto se considerarmos que o fazem de forma tendenciosa, apenas para salvaguardar aquilo que é do seu estrito interesse.

Subjacente à RSC trumpista está, como se sabe, o reforço das fronteiras e o barramento da imigração ilegal, a primazia dos interesses americanos – económicos, militares e outros – sobre os de outras nações, incluindo as tradicionalmente aliadas, o abandono de causas e instituições ambientais que considera ‘ecoterroristas’ e ‘hiperventiladas’, retornando às energias sujas, entre outras consideradas prejudiciais pelo atual regime americano. Para levar avante a sua agenda – inspiradora da extrema-direita internacional, incluindo a portuguesa – Trump não hesita em perseguir e “emboscar” quem não alinha com ele, propagando falsidades e não olhando a meios para alcançar os fins.

Trumpismos e hipocrisias à parte, quer-me parecer que faz sentido uma Revolução do Bom Senso que revolucione o senso comum. As derivas ideológicas permitidas pelo niilismo ideológico devem ser corrigidas, separando o trigo do joio, que é como quem diz, separando a mudança e o progresso virtuosos – alicerçados em sólidos princípios e instituições democráticas – tanto do infantilismo e bandalheira de uns como do saudosismo e boçalismo de outros, ambos movidos pela ignorância, pelo cinismo e por extremismos ideológicos que destroem mais do que constroem. A reposição do Bem é, pois, a condição necessária e suficiente para afastar o Mal.

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José Nascimento
José Nascimento
Tem 68 anos e vive na aldeia de Vale de Zebrinho (Abrantes). Reformado do ensino superior, onde lecionou disciplinas de gestão e psicologia social, dedica o seu tempo à atividade cívica e autárquica. É, também, membro do núcleo executivo do CEHLA – Centro de Estudos de História Local de Abrantes (editor da Revista Zahara). Interessa-se pelas dinâmicas políticas e sociais locais e globais, designadamente pelos processos de participação e decisão democráticos.

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