Nos corredores do poder, onde as palavras fluem com a leveza de promessas e o peso de compromissos adiados, surgiu finalmente a confirmação: a Presidência do Conselho de Ministros aprovou o acordo para a construção da ponte internacional sobre o rio Sever, ligando Montalvão a Cedillo. A notícia, publicada em Diário da República, chega com a solenidade de quem quer ser lembrado pela grande obra — ou, pelo menos, pelo decreto
Este projeto, nascido da XXV Cimeira Ibérica em Faro, é apresentado como a solução milagrosa para a mobilidade e a economia da região. Um investimento de 11,9 milhões de euros, financiado pelo PRR, que promete cortar 85 quilómetros de viagem, estreitar distâncias e expandir horizontes. Uma ponte que, mais do que unir margens, pretende conectar destinos e, talvez, resgatar a esperança de uma população habituada a ver projetos naufragarem antes de tocarem terra firme.
A aprovação da Declaração de Impacte Ambiental pela APA foi um raro momento de pragmatismo, ainda que condicionado — porque, em Portugal, até a natureza tem de esperar pela burocracia. Mas a luz verde acendeu-se, e a promessa ganhou contornos de realidade. A Câmara de Nisa, com os autarcas a liderar o pelotão de otimistas, vê nesta obra a chave para desbloquear o desenvolvimento regional.
Curioso é olhar para trás e perceber que a ideia de construir uma ponte já foi, em tempos idos, apresentada como a chave para um futuro mais promissor para Castelo Branco. Numa crónica nostálgica, publicada no jornal “ORegiões”, antecipava-se um desenvolvimento idílico, onde uma simples travessia sobre o rio ligaria Malpica do Tejo a Espanha, aproximando a Beira Baixa da vizinha Extremadura e fazendo florescer a economia local com um fluxo constante de turistas e trocas comerciais.
Entretanto, enquanto a vizinha região do Alto Alentejo já ergue pontes com a confiança de quem sabe que o progresso não se faz a remo, Castelo Branco, capital de uma região que se orgulha das suas tradições, continua a viver o paradoxo de estar a pouco mais de trinta quilómetros de Espanha, mas com a sensação de que a distância se mede, não em quilómetros, mas em resignação.
Quando a esperança de ver o betão unir margens parecia desvanecer-se, eis que surge a proposta visionária do então presidente da Câmara, Leopoldo Rodrigues, que, após uma reunião em Malpica do Tejo, apresentou uma solução que mais parecia saída de um romance medieval: travessias sazonais de barco. Um remendo frágil para uma ferida que sangrava a cada quilómetro extra que os residentes eram forçados a percorrer, num desvio kafkiano de 198 quilómetros, para contornar um rio que, com cruel ironia, permanece ali, ao alcance do olhar.
A ponte, esse símbolo de união e progresso, transformou-se num fantasma que paira sobre a região, lembrando a todos que o desenvolvimento não é feito de promessas nem de proclamações solenes, mas de vontade política e sentido prático. Enquanto isso, os habitantes da Beira Baixa continuam a espreitar a margem oposta com a melancolia de quem sonha com uma ligação que nunca chega, enquanto os barcos sazonais deslizam, num vaivém anacrónico, carregando a ironia de uma terra que insiste em navegar contra a corrente do tempo.
A ponte do Sever, nesse contexto, surge como uma redenção para décadas de abandono das infraestruturas fronteiriças. Mas será que aprendemos a lição? Ou em Castelo Branco estaremos apenas a construir mais um monumento à lentidão do progresso? Se a travessia de barco era um retrocesso, o desvio de 198 quilómetros era uma piada de mau gosto. A ponte prometida precisa de ser mais do que cimento e ferro; precisa de ser símbolo de uma nova era de integração.
Não basta inaugurar a obra com discursos inflamados e cortar a fita com tesouras douradas. É preciso garantir que esta ponte não se transforme num elefante branco, esquecido depois do momento fotográfico. Que sirva como catalisador para a cooperação transfronteiriça, impulsionando o turismo, a economia local e a fixação de populações que há muito se sentem abandonadas pela política centralizada.
A hora é de agir, mas com visão. Esta ponte deve ser mais do que uma ligação física: tem de ser a materialização do desejo de progresso. Um farol que guie a região para um amanhã próspero, onde os sonhos de desenvolvimento não sejam eternamente arquivados em gavetas ministeriais.
Se quisermos transformar o deserto em jardim, como referi na minha crónica “Uma Ponte para o Futuro ou Apenas Mais um Rumo?”, é necessário mais do que intenções. É imprescindível que esta ponte represente um novo paradigma de governação, onde as promessas não morrem na praia — ou, neste caso, no rio.
Que esta travessia, tão ansiada, seja a metáfora perfeita para uma região que já esperou demasiado. Porque, ao fim de tantos anos, os residentes merecem mais do que um atalho: merecem um caminho sólido para o futuro.