Amorar não é uma coisa estranha. É algo que vai e vem em nós, em tempos de altivez ou desconsolo, em tempos normais e anormais. Não é uma avaria na alma nem a inatingível função da perfeição.
Amorar não é a caça à amora e a sofreguidão que derrapa sempre em quatro picos nas mãos, mas duzentas amoras doces na barriga. É um afago e um dado de sorte, que o tempo que temos não sabe quando é e o que será. O tempo vai connosco descuidado e inocente – e quando surge a dita, pousamos seguidores desse sentimento.
Pois que fazê-lo não é voluntário, não se dispõe de regras para saber tragar o que está para vir ou caminho para compreender o que está para ir. É algo de tanta surpresa que até estávamos avisados. É um pedaço de ferro-tungsténio que se esfarela à primeira festa que se lhe faz. É um casaco de um avô que se herda e só anos depois descobrimos os secretos bolsos onde se escondia, naqueles dias, o volfrâmio.
Amorar não é deixar de morar aqui. Não é o abandono da casa, a saída do monte depois da safra, o esgar cá debaixo para o prédio onde morámos. Nem é um ataque de ovos podres no carnaval ou um saco vazio quando se acaba a volta do pão-por-deus.
Também, e muito menos, é deixar. Ou largar e fugir, voar baixo sobre as portas do Ródão em direcção à nascente. Muito menos deixar o olhar esgalhado nos olhos da pessoa que está na outra mesa da esplanada e que são os mais belos olhos com a mais bela voz que já ouviste.
Nem a corda e o banco.
Nem a corda e a pedra.
Nem a caçadeira nem o pó fatal.
Nem o chão oleado e derrapante.
Amorar foi o que me chegou quando a 22 de Janeiro me telefonaram a dizer que ela já tinha falecido. Amorar foi o que senti meia hora antes dessa chamada, na outra anterior, em que me mandavam despachar se ainda me quisesse despedir.
Amorar é namorar só com amor, é incorporar a saudade, é preencher o vazio no peito com tudo aquilo que com ela vivi e, de forma sublime, continuar a ouvi-la ainda hoje, passado um mês desde a queda da vela que velava e da esperança ateia no milagre.
Amorar é amar para sempre. Mesmo na vida se amora a paixão que deixámos fugir. E amorar na morte é não largar a mão doce, afectuosa e maternal que se mantém quente e presente na estação em que estamos e para os futuros siderais.
Se calhar, enganei-me.
Amorar é mesmo amar sempre e sempre provar doces amoras da memória que sempre irá comigo até ao fim do meu drapejante movimento.