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Lançamento do Livro «Ai, Alentejo», de Abílio Amiguinho

O lançamento do Livro «Ai, Alentejo –  Memórias Rurais»,  de Abílio Amiguinho, aconteceu nesta terça-feira, no Auditório da Escola Superior de Ciências Sociais do Instituto Politécnico de Portalegre, que se encontrou completamente cheio

Lançamento do Livro «Ai, Alentejo», de Abílio Amiguinho
DR

 

Abílio Amiguinho, Professor Coordenador aposentado do Departamento de Ciências Sociais, Território e Desenvolvimento, da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais do Politécnico de Portalegre.

Esta obra, das Edições Colibri, tem o prefácio de Rui Canário – Professor Catedrático Aposentado da Universidade de Lisboa.

«Boa tarde a todos

Quero, naturalmente, começar por agradecer ao editor da Colibri, Fernando Mão de Ferro, e ao autor, Prof. Amiguinho, o honroso e desafiante convite para a apresentação do seu novo livro, desta vez essencialmente autobiográfico.

Como escreveu Pessoa:

«Quem quer dizer o que sente , não sabe o que há-de dizer

Se fala, parece que mente, se cala, parece esquecer».

Este não é o único dilema que se coloca a quem como eu é conferida a missão de apresentar um livro.

Outro é o de saber até onde poderá ir na apreciação crítica que terá necessariamente de fazer, se for o caso, para não se trair a si próprio e ao mesmo tempo não dececionar nem o autor nem o público que o ouve.

A mesma questão se coloca quanto aos elogios – até onde ir sem ser exagerado, correndo o risco de matar pelo excesso.

Trata-se, no fundo, como em muitas outras situações da vida, de procurar o equilíbrio, o justo meio – nem tanto ao mar, nem tanto á terra.

No caso do Professor Abílio Amiguinho, estou à vontade, quer no que respeita aos elogios quer no que se refere às críticas:  não nos conhecendo antes, não estamos vinculados pelos deveres da amizade que poderiam inibir-nos a crítica ou impor-nos o encómio.

Mas há um porém para o qual vos tenho de advertir em abono da objetividade – embora nos separem 7 anos em termos de idade, somos ambos do mesmo Alentejo – o alto e mais concretamente, ambos com infância e juventude vivenciadas na planície, mais do que na serra.

Não espanta por isso que haja da minha parte um inteiro e confesso partidarismo na apreciação da obra:  ela trouxe-me de volta e de chofre todo o Alentejo da minha infância; as imagens, os sons, os cheiros, as paisagens, os rostos, as vozes, a culinária, as feiras, a fartura da Páscoa – as cadências do cultivo do solo marcadas pelas festas religiosas – tudo vivências que marcam uma vida e moldam o caráter.

Trouxe-me de volta também um mar de expressões, ditados, nomes, mesmo de coisas ou situações comuns na infância que entretanto desapareceram dos nossos radares – de galos na cabeça a sabão macaco, passando por rebenta bois, entre muitos outros.

Isto, a par de designações de plantas, instrumentos de produção e de uso diário que o autor vai citando, que tornam necessário, para quem não é daqui e até para muitos que daqui são, como eu, o recurso frequente, a todo um Glossário no final do volume, que aliás se pode, com utilidade e prazer, ler por si mesmo.

Foi, portanto, para mim, um grande prazer poder reviver essas memórias, inclusive reavivando ou até recuperando inteiramente algumas que já tendiam a esvair-se e perder-se.

Nessa medida, não sou, obviamente, imparcial – está aqui, neste livro, o inteiro fado alentejano que é o nosso e ambos partilhamos na mesma época das nossas vidas.

Para todos os que tiveram essas experiências ou queiram conhecê-la, este é um livro indispensável – um testemunho etnográfico de época.

Pessoalmente, para mim, que ainda ambiciono escrever um dia alguma coisa sobre o mesmo tema, vai ser mesmo um livro de cabeceira, ou de secretária, a consultar com frequência. E aqui, como numa célebre canção de Vinícius de Moraes, peço desde já humildemente, a sua bênção, Professor!

Começando devagarinho, com a descrição de uma aurora a despontar no campo, ainda sob o céu estrelado, acordando ao mesmo tempo que o rebanho a seu cargo, o autor vai-nos levando, a pouco e pouco, através de pequenas crónicas, para essa realidade hoje quase remota, operada que foi – para o bem e para o mal – a partir dos anos 80, a separação entre a agricultura e o meio rural , pondo fim a um certo tempo longo vindo das profundezas da História, que parecia não ter mais fim.

Mas, se o relato assim repartido em crónicas curtas, ajuda a progredir na leitura, isso não deve iludir-nos – este não é propriamente um livro fácil: pelo contrário – é um livro exigente, porque as estórias relatadas vêm envoltas, todas elas, numa aura de poesia – como é próprio do Alentejo – que nos obriga a ler e reler uma e outra vez até que por fim a imagem se torne nítida.

É um pouco como na revelação das antigas fotografias, que tinham de ser deixadas em certos líquidos que havia que agitar de vez em quando até que finalmente a imagem se desvendasse, revelando-se e deixando desfrutar na sua plenitude,  devendo depois ainda ser dependuradas a secar, adquirindo cada uma o seu lugar próprio na sequência do rolo, primeiro, e na seleção do fotógrafo, depois.

Trata-se, como bem assinala, no Prefácio, o Prof Rui Canário, evocando Antunes da Silva e o seu “Alentejo é sangue”, de “um cortejo de sonhos de um rio abstrato que corre nos anos da nossa memória; e as águas desse rio dão calor às plantas e matam a sede dos homens”.

O estilo, nota o Professor, lembra Raúl Brandão, Graciliano Ramos, Saramago, Rodrigues Miguéis…E ainda, diríamos nós, certos trechos de Aquilino e Alves Redol. Para já não falarmos, no plano antropológico, da consagrada tese de José Cutileiro – “Ricos e Pobres no Alentejo”.

Tudo isto à mistura com referências de ordem científica, sociológica e histórica, que enquadram e contextualizam as descrições dos episódios.

É com toda esta complexidade que o leitor se defronta, sendo desafiado a ponderar e refletir. Não sei como será convosco, mas no meu caso, e embora tivesse só uma semana para ler o livro e preparar esta intervenção, optei por uma leitura espaçada, em doses homeopáticas, para melhor desfrutar e entender.

As estórias oscilam entre episódios pungentes que revelam as profundas diferenças sociais e alguns quadros pícaros ou simplesmente engraçados, uns e outros dignos de filme.

Quando, por exemplo, nos fala das mudanças no mercado de trabalho induzidas pela emigração, sublinha que o caráter das gentes do povo: permaneceu, no essencial, idêntico, “na determinação, no não ter medo nem recuar na adversidade e muito menos no trato com os superiores. No entanto, solidário sempre com os do mesmo lado.”

No fundo, confirma, neste passo e ao longo de todo o texto nos episódios que descreve, o que já Torga assinalara:

 “É preciso ter uma grande dignidade humana, uma certeza em si muito profunda, para usar uma casaca de pele de ovelha com o garbo dum embaixador. Foi a terra alentejana que fez o homem alentejano, e eu quero-lhe por isso. Porque o não degradou, proibindo-o de falar com alguém de chapéu na mão.”

Quanto aos episódios burlescos, pícaros ou divertidos, e não querendo ser “spoiler”, lembro por exemplo a corrida das crianças saltando por entre as travessas do caminho de ferro que só por milagre não terminou em tragédia, os ovos quebrados numa tentativa gorada, em conjunto com a mãe, de contrabando para Espanha em tempo de vacas magras ou ainda umas laranjas perdidas, deslizando pelo rio, escapando ao alcance das mãos…

Feito assim o elogio, em que os mais críticos não deixarão de ver laivos de crítica, resta-nos fazer uma crítica que é um elogio: o autor apaga-se propositadamente, preferindo sempre a primeira pessoa do plural à primeira do singular, apagando-se no coletivo como que se o relato viesse de todos, da realidade vivida e não dele.  E mesmo quando expressa crítica ou desagrado, como em relação à velha Escola, nunca levanta a voz.

Para quem como Abílio Amiguinho, teve sempre, a partir da idade adulta, uma vertente de intervenção em prol da comunidade, seja no âmbito da política, do ensino ou da cultura, compreende-se a modéstia da opção narrativa.

Mas não podemos deixar de lamentar que nalguns casos a descrição perca alguma força devido ao esbater do sujeito.

Tudo somado, entre as lendas e narrativas pessoais e as descrições gerais enquadradas pelo conhecimento científico posterior, há sempre neste livro uma espécie de diálogo surdo entre o pastor de rebanhos que o autor foi na infância e adolescência, e o pastor de ideias, teorias e conceitos, que passou a ser quando se formou e passou a lecionar. No sedimento desse confronto, resta sempre a poesia.

Um livro, afinal que nesta complementaridade acaba por confirmar também a visão de Torga sobre o que temos e somos enquanto Portugueses neste pedacinho terra à beira-mar plantado:

“Terra da nossa promissão, da exígua promissão de sete sementes, o Alentejo é na verdade o máximo e o mínimo a que podemos aspirar: o descampado dum sonho infinito, e a realidade dum solo exausto.”

Ps – No final, foi servido um aconchegante chá de ervas do campo a acompanhar umas broinhas de azeite simplesmente deliciosas.»

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Carlos Fino
Carlos Fino
Quase quatro décadas como comunicador, Carlos Fino foi distinguido com diversos prémios. Entre os quais se destacam o grande prêmio Português de imprensa (1994). Costuma ser lembrado como "Aquele repórter do Furo Mundial" , por ter sido o primeiro a anunciar, com imagens ao vivo, o bombardeamento de Bagdade na Guerra do Iraque (2003).

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