Há dias fiquei enrodilhado no sofá às três da madrugada, com os olhos pregados no televisor como um turista alcoolizado no Bairro Alto. Não por vontade própria, que fique claro, mas por aquele acidente terrível que é o comando ficar longe demais do braço e a preguiça ser maior que a dignidade.
E foi assim que descobri o submundo televisivo das noites mal dormidas. Um universo paralelo onde seres de maquilhagem excessiva comentam as fotografias de veraneio de gente que, supostamente, todos deveríamos conhecer. “Olha como está maravilhosa de biquíni!”, exclamava uma senhora cujo penteado parecia desafiar todas as leis da física. E todos concordavam com acenos vigorosos, como se aquela actriz da telenovela das nove fosse a reencarnação de Maria Callas.
É absolutamente fascinante. Um grupo de pessoas de estética duvidosa, sentadas em sofás de pele sintética, a dissertar sobre a “forma física invejável” da antagonista da novela “Paixão no Montado” ou do galã de “Beijos Proibidos na Avenida”. E tratam-nos com a veneração que nem o Prémio Nobel da Paz recebe. Porque, claro, estas personalidades magnetizantes conquistam audiências, audiências atraem publicidade, e publicidade significa dinheiro. No fim, é sempre o dinheiro.
Estes programas têm exactamente zero de relevância cultural. Conteúdo intelectualmente tão denso como uma nuvem de vapor. A não ser, evidentemente, quando estes valentes comentadores dos comentadores se deparam com temas fracturantes. Aí, sim, o espectáculo torna-se no equivalente televisivo do jogo “Escrúpulos”, aquele divertimento de tabuleiro onde éramos forçados a confrontar os nossos preconceitos mais obscuros. Lembram-se? Aquele que provocava discussões acaloradas nos serões familiares dos anos 90 e deixava os tios corados de fúria.
Mas não, na maior parte do tempo, estes programas dedicam-se ao elevado exercício de analisar decotes generosos e pernas bronzeadas. “Está tão bem assim, um pouco mais rechonchuda”, proclamam, como se fossem nutricionistas com especialização em psicologia da imagem.
Proponho, então, uma revolução: mantenhamos o formato, mas alteremos radicalmente os alvos. Imaginem as possibilidades! Um painel de comentadores a discutir fervorosamente o
novo corte de cabelo do Mário Centeno. “Reparem como o cabelo curto atrás valoriza a curvatura do seu crânio económico!”. Ou então, mostrem-nos as fotografias das férias do Procurador-Geral da República. “Vejam como fica bem de calções às riscas! A justiça também precisa de sol, amigos!”
E onde estão, pergunto eu, as análises ao biquíni do Marques Mendes? Por que não dedicamos 45 minutos televisivos às críticas ao penteado do António Barreto? Ou uma hora inteira sobre os conjuntos saia-casaco do Cardeal Tolentino?
O filão é inesgotável! E o povo, esse eterno apreciador do espectáculo, deliciar-se-ia com o magnífico decote do Almirante Seringa! Acrescento ainda, num delírio de clarividência surrealista, que estes monumentos à idiotia colectiva deveriam ser adaptados para formato radiofónico, emitidos entre as três e as cinco da madrugada, período em que os insones crónicos e os absentistas voluntários do sono procuram desesperadamente um motivo para abraçar Morfeu. Imagine-se o locutor a descrever, com voz aveludada e cadência hipnótica, os contornos do saiote que o Governador do Banco de Portugal usou na praia da Comporta. Ou os detalhes minuciosos do bronzeado do Primeiro-Ministro, criando uma espécie de “strip-tease” auditivo que faria água na boca aos noctívagos involuntários e ao próprio Marcelo Rebelo de Sousa — que, como todos sabemos, é um apreciador confesso de todos os formatos mediáticos onde possa, eventualmente, aparecer de tronco nu a nadar para salvar uma senhora idosa ou simplesmente a comentar o sapatinho de sola encarnada do Procurador-Geral Adjunto do Tribunal Constitucional.
Talvez assim, na absurda inversão do ridículo, nos apercebêssemos finalmente de que a verdadeira celebridade, a única que merece o nosso escrutínio colectivo, é aquela que trabalha diariamente para construir uma sociedade melhor — e essa, curiosamente, nunca aparece nos programas da madrugada.