Imagine-se um homem. Um ‘doutor’. Um titã do pensamento crítico, cuja barba branca parece tecida com os fios da sabedoria universal. Este homem, cujo nome ecoa como um mantra pós-colonial — Boaventura ‘Sexy’ Santos —, aparece num ecrã de televisão a explicar, com a serenidade de um buda laicizado, que carregar no nariz de uma colega é apenas um “gesto pedagógico”. Sim, leitor: pedagógico. Como quem diz: “Aperte aqui, madame, e sinta a dialética materialista”.
O cenário é este: num país onde a justiça corre mais devagar do que um sem-abrigo a fugir de uma multa, um académico venerável defende-se de acusações de assédio sexual com a mesma lábia com que, noutros tempos, explicaria a crise do neoliberalismo. A sua tese? “Não sabia.” Não sabia que, em 2023, apertar narizes alheios já não é cumprimento de arraial minhoto, nem que “senta aqui” soa menos a convite para um debate sobre epistemologias do Sul e mais a proposta para um ‘casting’ duvidoso. É, caro leitor, o triunfo do ‘homo academicus’ sobre o ‘homo juridicus’: quando o seu currículo é tão extenso que ocupa o espaço moral que deveria ser preenchido por um simples “peço desculpa”.
O Delírio
Não surpreende, pois, que o caso tenha gerado um terramoto nos corredores da academia. O Centro de Estudos Sociais de Coimbra, outrora templo da sociologia crítica, transformou-se num laboratório de absurdos. Fontes próximas do ‘establishment’ intelectual revelam que já circula uma investigação inédita, intitulada “Toque Corporal Como Metodologia de Pesquisa: Para Além do Consentimento, Rumo à Consciência Coletiva’, assinado por uma tal Dra. Hermínia Castanho, doutorada em “Antropologia do Carinho”. A premissa? Que o toque não consentido é, na verdade, uma forma de “democratizar o corpo alheio”, um acto revolucionário contra a tirania do individualismo burguês.
Aprovado o manifesto, seguiu-se o inevitável: universidades por todo o país adoptaram o ‘Protocolo Santos’, um conjunto de directrizes que substitui os comités de ética por círculos de carícias dialécticas. Na Faculdade de Letras do Porto, um professor de Literatura Comparada justificou um abraço prolongado a uma aluna citando Fernando Pessoa: Tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Em Évora, um investigador de História Medieval criou um workshop intitulado ‘A Cavalaria Romântica no Século XXI: Como Desembainhar Elogios sem Ferir Susceptibilidades’.
E os media, claro, não ficaram atrás. A SIC, sempre ávida por conteúdos ousados, lançou o programa ‘Quem Quer Ser Assediado Por Um Doutor?’, onde concorrentes disputam bolsas de estudo sob a condição de aguentar 15 minutos de conversa com um catedrático numa sala sem câmaras. O vencedor da primeira edição, um estudante de Ciência Política, descreveu a experiência como “traumática, mas excelente para o networking”.
Ora, dirá o leitor mais atento: isto é uma farsa. Claro que é. Mas a farsa tem um detalhe sublime: enquanto discutimos se um toque no nariz é assédio ou poesia corporal, esquecemo-nos de perguntar por que raio um homem de 82 anos, aposentado há décadas da vida pré-digital, ainda detém o poder de ditar o que é — ou não é — aceitável num laboratório de ideias. O verdadeiro escândalo não está nos dedos que apertam narizes, mas nas estruturas que permitem que certos ‘iluminados’ tratem corpos como apêndices dos seus comportamentos oriundos e respeitáveis daquela Paris de ‘69, onde não apalpar e gritar ao mesmo tempo, é que era crime.
Há, contudo, uma fresta de luz nesta caverna de egos: a geração que cresceu a ver ‘hashtags’ em vez de hagiografias já não engole facilmente erudição como substituto da ética. São eles que, em silêncio, riscam das bibliografias os nomes dos que confundem cátedras com haréns intelectuais. Não é uma revolução — é uma duvidosa actualização do sistema. Lento, como tudo neste país, mas inevitável.
Um Pedreiro Livre
E assim, caro leitor, quando o Prof. Sexy Santos partir para a grande academia celestial (onde esperamos que São Doutor Pedro tenha um código de conduta mais “é virgem mas serve”), restará uma lição: por mais que se invoque Hegel para justificar um toque, o único ‘espírito absoluto’ que importa é o que diz “não”. Mesmo que sussurrado.
É que Boaventura sempre foi Boaventura e as alunas e, depois, colegas, sabiam disto. E, ao aceitá-lo, sancionaram o comportamento. A primeira vítima devia ter puxado do extintor e resolvido o problema. Mas o “problema” não era o “problema”. É que um coração de trolha pode viver dentro do Homo Doutus, numa versão Johann Pachelbel.