O Fausto partiu, mas a coerência musical que sempre o acompanhou não será esquecida. Pessoa tímida mas extremamente rigoroso na sua estética musical, não era fácil trabalhar com ele. Nasceu em 1948 no paquete Pátria, a caminho de Angola, esperava-o uma adolescência rebelde, bem na crista do Rock and Roll de finais dos anos 50. Em 1965 formou o conjunto Os Rebeldes em Nova Lisboa (Huambo) e interpretavam, na sua maioria, temas dos Beatles. Percorreram todo o território angolano e ganharam vários festivais yé yé
Em 1968, de novo em Portugal, no âmbito do movimento associativo em Lisboa, aproximou-se de nomes como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Manuel Freire, juntamente com José Mário Branco ou Luís Cília, que viviam no exílio. Em maio de 1974, com José Mário Branco, Afonso Dias e Tino Flores, foi um dos fundadores do GAC.
Em 1969 lançou o primeiro EP, Fausto, com o qual venceu no mesmo ano o Prémio Revelação da Rádio Renascença. O seu último álbum, Em busca das montanhas azuis, foi lançado em 2011 e contou com arranjos musicais de José Mário Branco em quatro faixas, companheiro que também já partiu. Ao todo gravou 12 discos, entre 1970 e 2011, que gradualmente vão evoluindo de temas de protesto, nunca panfletários mas com influências pop/ rock, para a exaltação, nunca nacionalista ou reacionária, da diáspora portuguesa. Atingiu a perfeição em 1982 com Por Este Rio Acima, baseado na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que pertence à trilogia “Lusitana Diáspora”.
E é esse aspeto que eu considero mais relevante na sua obra e que tentarei, de forma muito breve, identificar: de forma coerente, mas sem certezas, consegue ter sido músico revolucionário e ao mesmo tempo demonstrar a admiração pela cultura lusófona, continuando atento à contemporaneidade. E não renega a sua passagem por África, misturando ingredientes que renovaram a música portuguesa, veja-se o álbum A Preto e Branco, editado em 1988.
Começo por uma nota curiosa, que mergulha nos seus tempos roqueiros, analisando a canção “Marcolino”, do seu álbum Pró Que Der e Vier, editado em 1974, mas onde também já se encontram referências às aventuras e desventuras da nação portuguesa.
A admiração de Fausto pelos Beatles levou a que o nosso Marcolino funcionasse como homenagem à faixa Uncle “Albert/Admiral Halsey” que Paul Mccartney incluiu no seu álbum RAM de 1971. O tema de Mccartney evoca o fim dos Beatles, juntando diversas composições suas dispersas e não gravadas. Vale a pena ouvir e comparar, a estrutura é praticamente a mesma, houve uma pura transposição das ideias de um para o outro.
Ô Marcolino, das longas viagens
Diz Marcolino se outra vida tiveste
O que fizeste, o que te fez mudar?
“Já fui camponês, soldado
E a vida foi sempre igual
Insultei patrões, oficiais
E nunca me senti mal
Ganhava pouco, fome de cão
E enchia a pança aos canibais e ainda encho
Fui sempre indisciplinado, pois claro
Que outra coisa posso ser então?
Anos mais tarde, com Por Este Rio Acima assume a estrutura musical que manteria até ao seu último trabalho, onde a utilização de instrumentos musicais e ritmos tradicionais portugueses, elevam o folclore a uma dimensão nunca antes alcançada. O tema “O Barco Vai de Saída” é utilizado no documentário sobre o II Raide Macau Lisboa, expedição incluída nas Comemorações dos 500 anos dos Descobrimentos. No dia 8 de julho de 1997, em Belém, Fausto ofereceu um dos seus mais marcantes concertos, celebrando os 500 anos da partida de Vasco da Gama para a Índia, no mesmo dia em 1497, a convite da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
Em 12 de junho de 1985 Portugal vira-se para a Europa, aderindo à CEE, e Fausto, sarcástico, sublinha essa transição em “Foi Por Ela”, comentando o que se perdeu e o que se iria ganhar…
Foi por ela que eu me enfeito de agasalhos
em vez daquela manga curta colorida
se vais sair minha nação dos cabeçalhos
ainda a tiritar de frio acometida
mas o calor que era dantes também farta
e esvai-se o tropical sentido na lapela
foi por ela que eu vesti fato e gravata
que o sol até nem me faz falta foi por ela
Muitos textos irão ser publicados referindo a sua timidez, que eu confirmo, não por ter com ele convivido, mas porque conheci quem fosse seu companheiro nos tempos de Angola, depois em Lisboa, aos 20 anos, onde se instalou a fim de prosseguir os estudos — concluiu a licenciatura em Ciências Políticas e Sociais – e, ultimamente, com a sua banda. Pessoas diferentes mas dele próximas, acentuam a sua recusa em ser vedeta (convençam-no de que ele é bom, insistia a esposa, divertida), músicos dos Rebeldes, amigas dos tempos de liceu em Lisboa, o teclista Enzo D´Aversa.
Alguém que com ele trabalhou recorda que “o seu rigor quase excessivo tornava, por vezes, os ensaios exasperantes, era necessário termos muita calma e paciência”.
Em certas fases da sua vida colocou em causa algumas das suas opções políticas, o que talvez nem sempre nem sempre tenha sido devidamente compreendido, mas isso são outras viagens…
Eu prefiro realçar a forma genial como musicou a multiculturalidade que trazia dentro de si. Cantou aqueles que viajaram pelo sonho, ainda que houvesse conflitos. Pelo sonho do conhecimento, do contacto com outros povos.
Mandei-lhe uma carta em papel perfumado…