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A cena musical em Luanda até à independência, Parte III

Saiu há pouco tempo o primeiro documentário cinematográfico sobre Heavy Metal, produzido por Sónia Mendes e João Mendes. Isso fez-me decidir escrever sobre a passagem da Heavy Band por Angola, não apenas porque trouxe som novo através de grandes músicos (Filipe Mendes, Girão, Pedro Romeiro, Zé nabo, André Sarbib, entre outros) e assim influenciaram alguns conjuntos da altura, mas também porque a banda teve um percurso interessante. Para esta absorção de sons mais pesados pelos conjuntos pop/ rock angolanos, designadamente na versão final dos Windies, merece especial relevo Pedro Romeiro, que em 1973 ingressou nos Windies, a convite do Beto Kalulu.

É pelo Pedro Romeiro que começamos estas memórias, que encontra na Heavy Band onde livremente poderia demonstrar a sua técnica no Rock psicadélico, que já começara a experimentar nos Chinchilas (“Barbarella”, disco onde Pedro Romeiro é baixista e gravado em 1970, é considerado pelo saudoso Filipe Mendes um dos seus melhores registos nos anos 70) e que mais tarde viria a introduzir nos Windies.

Saiu há pouco tempo o primeiro documentário cinematográfico sobre Heavy Metal, produzido por Sónia Mendes e João Mendes.
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Vamos contar um pouco da “vida fantástica” de Pedro Romeiro, como ele próprio define a sua passagem “por esse mundo fora”.

Recebi contacto inesperado do nosso amigo Joaquim Correia em Portugal, com interesse em detalhes da cena “Rock Music pesada” em Angola. Especificamente relembrarei a Heavy Band, com Fernando Girão vocalista, Berto no baixo, Zé Eduardo na bateria, Chico Fininho nos teclados e Felipe Mendes nas guitarras. 

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Começo por uma curiosidade, talvez de pouca gente conhecida.

Parti para Angola depois de pertencer aos African Boys com Joselito, o cantor espanhol que tanto êxito fizera no início dos anos 60, como também se passara com Marisol. Na verdade, os músicos Angolanos não queriam voltar para a terra para evitar o serviço militar, eu fui o único deles que voltou em 71, com o Xavier no teclado, o Ringo no baixo e um cantor muito bom, rapaz com defeito na perna, e um baterista com quem eu me peguei aos murros em casa do Joselito em Valencia. Nós tocávamos tudo o que gostávamos, muito à base de soul music. Actuámos em toda a Espanha, sozinhos ou integrados no show do Joselito que agrupava vários artistas, incluído a Marisol.

Note-se que vida de Joselito veio a estar ligada a Angola durante muitos anos, pois, conforme li na publicação on-line “Afribuku: Cultura Africana Contemporânea”:

En 1969 grabó su última película, Prisionero en la ciudad, sufrió el rechazo por parte del público y de los empresarios que lo habían mimado durante más de una década. Joselito no pudo soportar que de la noche a la mañana ya no le interesase a nadie su trabajo y se vio en la necesidad de huir de España y de su pasado como artista. Se puso en contacto con una distribuidora portuguesa y le pidió al director de la compañía que le ayudase a escapar a Angola, país que se encontraba en plena guerra de la independencia. Allí permaneció nada menos que ocho años tratando de alejarse de los fantasmas del pasado.

Antes do Felipe Mendes chegar de Portugal, tive a felicidade de ter  preenchido o lugar de guitarrista durante meio ano no seu conjunto: o Grupo 5, que passou a ser Heavy Band quando o Felipe Mendes chegou a Angola. 

Saiu há pouco tempo o primeiro documentário cinematográfico sobre Heavy Metal, produzido por Sónia Mendes e João Mendes.
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De seguida entrei para os Windies com Eduardo Ramos na guitarra e voz, Beto Kalulu bateria, Pedro Billy guitarra, Horácio nas teclas e Rakar no baixo. Em partilha de shows com o Heavy Band, a nossa última formação dos Findeis, enchemos o Miramar, Restauradores, e o estádio do Benfica, às vezes com cerca de 10 mil espectadores em outras cidades Angolanas. 

Tempos épicos do Heavy Rock em Angola. Estes bons músicos portugueses trouxeram para Angola todos os sons vibrantes da música Rock, Rock Progressivo e Heavy Rock influenciada por bandas Inglesas e Americanas, como os Led Zeppelin, The Doors, Deep Purple, Black Sabbath, Rolling Stones, Jimi Hendrix, Chicago, Santana, YES, Cream, Frank Zappa etc..

O Heavy Band influenciou grupos e músicos angolanos, com ZÉZÉ Ngambi, Nuno Mindelis e outros, que levaram essas influências para outros continentes. Hoje, nos EUA da América o Classic Rock continua popular e as bandas desse tempo continuam a encher espetáculos. 

Depois de Angola fui para Londres em 1974 /76, onde estive a tocar por dois anos com o Palm Beach Express por todos os cantinhos de Inglaterra, muitas vezes no mesmo palco das grandes bandas do tempo.

Passei 1977 e 1978 no Brasil por várias bandas e de 1979 até agora, toquei nos Jim & the Tonic Band Arizona, nos Estados Unidos, onde vivo. Segui uma carreira sensacional em Informática, onde também tenho muito que contar. Iniciei uma liga de futebol amador e um clube juvenil, pioneiros na América… com 71 anos ainda jogo futebol na liga dos 55 anos para cima, e participo em torneios internacionais Fomos campeões do Arizona e perdemos na final do campeonato nacional juvenil. FANTASTIC!!!!

Quero contar tudo no livro que estou a preparar, sobre a fantástica aventura da vida!

Mas voltemos à Heavy Band.

O Grupo 5 provém do Conjunto Sousa Pinto que surgiu em 1960 no Porto, por onde terão passado, segundo o próprio Sousa Pinto, Sérgio Godinho (terá tentado tocar bateria) e o saxofonista José Lello (conhecido militante do Partido Socialista), para além de terem acompanhado Paulo de Carvalho (LPA, Biografia do Ié-Ié). Em 1968 o Conjunto Sousa Pinto muda de nome para Grupo 5 e gravam 3 EPs.

Mantendo o nome Grupo 5 mas actuando frequentemente como quarteto, constituído por André Sarbib nos teclados, Fernando Nascimento na guitarra eléctrica, José Eduardo Al´Vesh na bateria e Al Berto no baixo eléctrico, estabelecem-se em Luanda a partir de 1970. Sousa Pinto nas teclas, Durindo no saxofone e Hernâni no sax-baixo também terão colaborado com a banda.

No ano de 1971, o agente da banda, o porto-riquenho Eddie Arroyos, procura novos elementos na Metrópole e convida Fernando Girão (Very Nice) como vocalista, Xico Henriques Corista para as teclas e Filipe Mendes para a guitarra solo. No período transitório até Filipe Mendes sair da tropa, este é substituído por Pedro Romeiro, que esperava em Luanda pela incorporação.

Há registos de que com essa formação, em Dezembro de 1971, no Estádio do Sport Luanda e Benfica, participaram no 1.º Grande Festival de Música Moderna de Luanda, considerado o Festival que mais público teve na história da música de Angola desse tempo: 25.000 pessoas.

Era considerado o único conjunto musical em Angola inteiramente composto por profissionais. Em princípios de 1972 passa a designar-se Heavy Band.

Em Março de 1972 alguns membros da Heavy Band partem para o Brasil, onde fizeram as primeiras partes de Gilberto Gil, Mutantes e Hermeto Pascoal, entre outros. Antes disso gravam os singles “Beggar Man” e “Your New Motel”, através da Decca, subsidiária local da Valentim de Carvalho, assinando Phil Mendes alguns dos temas (mais tarde, nos Ena Pá 2000, passa a designar-se por Phil Mendrix), bem como Very Nice e Xico. Também fazem parte da banda Zé Eduardo e Al Berto. São raridades difíceis de adquirir.

Com Grupo 5 e Heavy Band surge um novo som em Angola, o chamado Rock progressivo e psicadélico, onde a qualidade e intensidade do som e a presença em palco dos intérpretes eram características de tal forma marcantes que algumas entidades mais conservadoras se terão sentido incomodadas! De facto, apesar do evidente êxito alcançado – de que são prova as memórias de quem assistiu aos concertos – numa reportagem dum concerto a revista Notícia escrevia em Março de 1972 que o barulho era tanto que entre a assistência adultos não havia e nem os jovens eram assim tantos! As suas interpretações com repertório próprio e versões bem incendiárias dos Black Sabbath, Led Zeppelin e Deep Purple levaram mesmo a que fosse considerado um conjunto maldito do Hard-Rock psicadélico.

Fizeram diversas digressões pelo interior de Angola e Filipe Mendes recorda que em Vila Salazar (nunca gostei desse nome) fomos adorados pela população africana como deuses, esperavam que saíssemos do hotel para nos adularem, sem dúvida estupefactos com a nossa imagem e som!

Para alguns dos seus membros, o Grupo 5 e a Heavy Band significaram um salto qualitativo na respectiva carreira profissional.

A forma de compor e de cantar de Fernando Girão ficaram profundamente influenciadas com os sons e as vivências que encontrava quando se refugiava no mato, onde vivia o dia-a-dia da população geral, permanecendo como uma das bases de todo o seu vasto e profícuo trabalho. Lembramos que o músico tem mais de 20 discos editados em nome próprio, produziu mais de 80 álbuns para artistas nacionais e estrangeiros e editou cerca de 350 canções interpretadas pelo próprio e por diversos artistas portugueses e estrangeiros!

Curiosamente, hoje em dia, apesar de continuar a gravar, a sua luta está mais virada para se tornar um dos únicos treinadores de futebol UEFA a acabar o curso com mais de 60 anos…

Como ele próprio afirma o tempo africano influenciou e solidificou os princípios do que descobriria mais tarde ser o meu misticismo e o que chamavam de excentricidade, tornou-se parte natural de mim.

No artigo “A música Rock em Angola e Moçambique nos anos 60 e 70”, publicado em Deutsche Welle on-line, escreve Sofia Diogo Mateus:

A Heavy Band era uma das bandas mais populares de Angola dos anos 70. Fernando Girão era uma figura universalmente reconhecida – e talvez o melhor exemplo de quão estranhamente Rock’n’roll podia ser a vida numa ditadura.

Saiu há pouco tempo o primeiro documentário cinematográfico sobre Heavy Metal, produzido por Sónia Mendes e João Mendes.
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“Eu era um bicho raro ali no meio daquelas pessoas – mesmo depois, quando regressei a Portugal, continuava a ser”, conta Fernando Girão. “Agora imagine-se em Angola e em África: um sujeito com o cabelo pela cintura, que andava quase sempre sem camisa, descalço, com jeans rasgados… Eu vivia uma vida totalmente Rock’n’roll. Em geral, as bandas consideram que eram aceites pelas autoridades, ou, no caso da banda Heavy Band, tolerados, mais do que amados, diz Fernando Girão. Girão afirma que as críticas ao regime eram subtis e mais faladas do que cantadas e “refletiam-se de uma forma sociologicamente ligeira”.

“Falávamos no disco “Beggar Man” – um beggar é um vagabundo – dos problemas da pobreza e da revolta que isso provocava, portanto, falávamos em certas figuras da sociedade menos favorecidas”, exemplifica. No entanto, continua, “não havia nenhuma coisa que disséssemos cantada, que falasse explicitamente contra o regime ou contra os regimes em si mesmo”. “Ao vivo sim, entre as músicas tocávamos em assuntos “perigosos” e quem assumia essa atitude era eu, porque eu era o único, digamos, que falava com o público nos concertos”, explica o vocalista dos Heavy Band”.

Em conversa recente, acrescenta Fernando Girão que saía de casa, com um maço de tabaco com 20 “charros”. Naquele tempo, os brancos e a população local fumavam muita liamba. Por definição, podemos dizer que Luanda era a capital da verdadeira “loucura” dos anos 70, onde aconteciam coisas fantásticas e surrealistas. Nesse mesmo tempo, Lisboa era muito mais severa com os costumes sociais e consequentemente os músicos, aqui, eram mais “atinados”.

Escreveu Jorge Lima Barreto no Mundo da Canção de 1976: Fernando Girão é um show-man por excelência, cantor ravissement, hipervedeta, poder do Rock, a melhor concepção da pop nacional: os seus poemas são beat-cáusticos, loucos absurdos, genuinamente ligados à filosofia freak nacional.
Filipe Mendes descobre em Angola a África que já tinha no sangue. Recorda que na sua infância em Moçambique adormecia ao som dos batuques e das fogueiras e em Angola percebi de que forma o próprio Rock pode imanar sensações africanas.

Em 24 de Fevereiro de 1973 no Expresso, já a Heavy Band tocava em Portugal, Jorge Lima Barreto escreve em Música Pop Portuguesa no Reino da Mediocridade que Filipe Mendes revela-se indubitavelmente, solista de craveira superior: hábil, dinâmico, fulgurante, este discípulo de Hendrix representa a maior esperança da pop nacional. Lembremos que foi considerado pela Revista Focus um dos melhores guitarristas do mundo e que após a sua actuação em Vilar de Mouro Elton John o comparou a Jimi Hendrix. Como escreve o investigador João Paulo Callixto, estas qualidades não surgem por acaso: Para além da experimentação que fazia na guitarra, tem uma grande particularidade que o distingue: os estudos nos EUA [em 1967] e o que aprendeu lá, não só nas aulas, mas no quotidiano, que lhe deu uma componente técnica que não existia cá.

Escreve Rui Miguel Abreu em Rock em Portugal Anos 70: Eléctricos & revolucionários, Jornal Blitz on-line:

Na génese de um Portugal sintonizado com os caminhos mais duros do Rock encontra-se obrigatoriamente o grupo Chinchilas de Filipe Mendes, também conhecido por Phil Mendrix, um verdadeiro ícone da «arte eléctrica de ser português». Os Chinchilas tiveram uma existência efémera e editaram muito pouco, mas foram a primeira plataforma para o talento de Filipe Mendes que havia de formar os míticos Heavy Band no início dos anos 70. «As minhas influências foram os Beatles e os Stones e mais tarde os Cream e o Jimi Hendrix», revela Filipe Mendes. Inovador na forma de abordar a guitarra e com um estilo próximo do de Jimi Hendrix (razão pela qual ganhou a alcunha Phil Mendrix), Filipe Mendes tornou-se um verdadeiro militante da causa Rock em Portugal. Com os Chinchilas editou em 1971 o single «Barbarella», que Filipe Mendes ainda hoje considera o melhor dos seus registos na década de 70, explorando o formato de power-trio que continuaria com a Heavy Band, grupo que criou em 1972 com Zé Nabo e João Heitor. Esta formação ganharia mesmo estatuto mítico, por causa de distantes relatos de incendiários concertos e também porque os dois singles que gravaram só tiveram edição em Angola, factor que contribuiu para uma certa raridade e consequente procura. Filipe Mendes reconhece que os Heavy Band surtiram algum efeito no panorama musical português: «eu tenho noção que tive seguidores, desde o estilo de música até ao tipo de aparelhagem que usava. Muitas vezes entrei em casas de música em que os gerentes me diziam que havia muita procura de amplificadores como o meu. Na altura, recebi muitas ofertas, quer a nível nacional quer internacional, para comprarem as minhas próprias guitarras e amplificadores». Filipe Mendes faria ainda parte da única formação dos Psico que ficou registada para a posteridade.

Após o regresso a Portugal, em 1973,o grupo sofreu alterações em termos de formação, passando também a tocar música improvisada, sendo, na altura, acompanhados por Carlos Zingaro (violino).

Haverá em Angola músicos ligados ao Heavy Metal, que tenham ouvido falar da Heavy Band?

 

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Joaquim Correia
Joaquim Correia
“É com prazer que passo a colaborar no jornal Regiões, até porque percebo que o conceito de “regiões” tem aqui um sentido abrangente e não meramente nacional, incluÍndo o resto do mundo. Será nessa perspectiva que tentarei contar algumas histórias.” Estudou em Portugal e Angola, onde também prestou Serviço Militar. Viveu 11 anos em Macau, ponto de partida para conhecer o Oriente. Licenciatura em Direito, tendo praticado advocacia Pós-Graduação em Ciências Documentais, tendo lecionado na Universidade de Macau. É autor de diversos trabalhos ligados à investigação, particularmente no campo musical

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