Abramos, pois, o compêndio dos paradoxos modernos. No seu capítulo mais sórdido, encontra-se o Partido Socialista português: uma relíquia embalsamada em formalina centrista, exalando um odor a naftalina e nenhumas promessas de 1975. Não se trata aqui de um obituário — seria prematuro —, mas de um diagnóstico clínico sobre um organismo que, há décadas, confunde pulsão de morte com estratégia eleitoral.
Dizem os tratados de alquimia medieval que a transmutação do chumbo em ouro exigia um lapis philosophorum. O PS, porém, aperfeiçoou a fórmula inversa: transformou o ouro revolucionário em chumbo burocrático. Onde está a “gaveta” onde Mário Soares encerrou o Socialismo, perguntam os incautos? Desmontada, vendida a peso no eBay da História, substituída por um disco rígido partilhado onde se armazenam PDFs de teses sobre “terceiras vias” guterristas. O partido já não debate ideias; arquiva-as, como quem organiza um espólio fúnebre. A ala esquerda? Uma secção de três pessoas e um gato que, por engano, ainda citam Olof Palme entre dois cafés.
A metamorfose do PS em criatura híbrida — metade “apparatchik” socrático, metade consultor de McKinsey — é obra de uma engenharia política digna de um conto de Kurt Vonnegut. Pedro Nuno Santos, outrora profeta da ferrovia utópica, prepara-se para passar o testemunho a Carlos César, o Houdini açoriano que, num truque de prestidigitação genealógica, empregou primos, sobrinhos e até o cão da família em cargos públicos. Coincidência? Talvez. Ou talvez seja a nova “internacional nepotista”, onde Montenegro (também empregador de família) e César trocam dicas sobre como transformar o Estado numa startup de influências.
O PS é hoje um idoso que, perdido num shopping de ideologias, insiste em comprar botões de punho numa loja de smartphones. O seu eleitorado envelhece com a velocidade de um glaciar, enquanto os jovens — esses seres com a atenção de um TikTok e a paciência de um rato de laboratório — olham para o partido como se fosse um vinil riscado: curioso, mas inútil. Em 1988, sete minutos bastavam para prender uma mente humana; hoje, 22 segundos chegam para perder uma geração. O PS, porém, ainda ensaia discursos que parecem actas de reuniões de condomínio.
E aqui jaz o cerne do delírio: o partido não debate. Decidiu, num acesso de realismo mórbido, substituir a dialéctica pelo decreto. O “politburo” socrático — uma espécie de Santa Sé laica, sem Papa mas com muitos cardeais de fatos de linho — emite bulas que descem pela hierarquia como encomendas da Amazon. Os militantes, outrora oráculos de discussões intermináveis, são agora silenciados por meirinhos regionais, cujo poder rivaliza com o de pequenos déspotas iluminados.
O que assusta, caro leitor, não é a morte anunciada. É a ausência de luto. Enquanto Espanha inventava o Podemos e a Itália dançava com os 5 Stelle, Portugal aguarda um messias que não virá. O PS definha, mas não há velório à vista — apenas um lento suicídio institucional, disfarçado de “renovação”. Resta a pergunta: será esta a derradeira metamorfose — de partido hegemónico para morto-vivo tecnocrático — ou despertará do coma como Fénix reformista?
A resposta, como diriam os alquimistas, está no fogo que não se vê. O PS ainda poderá reacender a chama… se encontrar o isqueiro. Até lá, permanece um cadáver elegante, maquilhado para parecer vivo. Na política portuguesa, a fronteira entre o ridículo e o “estadismo” é tão ténue como a linha que separa o Socialismo da sua paródia, agora em cena.