Era uma vez um reino onde os homens iam cortar o cabelo não para parecerem gentlemen, mas para se tornarem filósofos de tasco. Os velhos barbeiros, mestres na arte de desbastar madeira facial e aparar hirsutismos duvidosos, eram também contadores de histórias, conselheiros matrimoniais não credenciados e comentadores desportivos de bancada. Nas suas cadeiras de couro rachado, entre o zumbido das máquinas e o cheiro a loção bay rum, desenrolavam-se epopeias menores: o golo falhado do Benfica, a caça ao javali que fugiu para o quintal do vizinho, a moça da mercearia que “até fazia uns olhinhos, mas depois era só conversa”. Era um teatro do absurdo, sim, mas nosso.
Hoje, entramos noutra dimensão. As barbearias de outrora deram lugar a espaços minimalistas, onde por cinco euros (preço de uma sandes de leitão em dias de festa) nos sentamos perante jovens barbeiros asiáticos, cujo português se limita a “curto ou médio?”. A conversa morreu. Em seu lugar, um silêncio sepulcral, interrompido apenas pelo clique-claque das tesouras e pelo som ambiente de uma rádio que toca hits de Bollywood. O freguês, antes protagonista do corte, é agora um mudo numa pintura de Edward Hopper. Pergunta-se: terá o progresso trocado a alma por um desconto de cartão de supermercado?
Os novos barbeiros, dizem os arautos da modernidade, são eficientes, rápidos, imunes a divagações. Não perdem tempo com trivialidades. Enquanto a navalha desliza pelo pescoço do cliente, poderão estar a pensar nas ligas de críquete de Bombaim ou nos últimos êxitos da música hindu — mas quem cá sabe? O português, esse, fica a olhar para o espelho, a relembrar os tempos em que uma ida ao barbeiro era um acto social, não uma transacção industrial. Até os cartazes nas paredes mudaram: em vez de posters da Samantha Fox, vemos anúncios a “massagem facial com óleo de cobra” (que, diga-se, soa a ritual de vingança de ex-mulher).
A ironia é que, nesta ânsia de integrar o “outro”, acabámos por nos desintegrar a nós. As barbearias, outrora redutos de masculinidade démodé, são agora ‘não-lugares’, onde até o ar cheira a desenraizamento. O cliente, em vez de sair com um corte de cabelo e uma piada sobre a sogra, leva para casa um rapamento impecável e um vago sentimento de que foi traído pela história. E, no entanto, insiste-se: isto é evolução. Como se substituir o chá das cinco por um shot de Red Bull fosse sinal de sofisticação.
Mas eis que a vida, essa mestre do sarcasmo, prepara a sua reviravolta. Num domingo cinzento, entro numa dessas barbearias-fantasma para um corte de emergência (leia-se: parecia que me tinham colocado um ninho de cotovia na cabeça). O barbeiro, um jovem de Bangladesh com um sorriso que denunciava tanto entusiasmo como um funcionário da repartição de finanças, pergunta-me, em inglês truncado, se quero “modelo David Beckham”. Respondo, em português carregado de esperança: “Faça como o destino: surpreenda-me.”
E eis que, enquanto a máquina zunia, o impossível acontece. Do telemóvel do barbeiro, escondido sob o balcão, ecoa uma voz familiar: José Cid a cantar “Vem dançar comigo, ó
Maria…”. O jovem, percebendo o meu olhar de espanto, encolhe os ombros e diz: “Portuguese music, very good.” Não houve conversa sobre futebol, caça ou moças. Mas, por instantes, numa barbearia sem alma, um hino kitsch dos anos 80 fez de ponte entre dois mundos que nunca se entenderão — e ri-me. Ri-me porque, no fim, até a globalização tem piadas falhadas. E talvez seja nesses desencontros, nesses acasos, que misturam José Cid com hindi pop, que reside a nova graça.
Perdemos as velhas barbearias? Sim. Ganhámos salões onde, em vez de conversa, há silêncio; em vez de camaradagem, eficiência. Mas, caro leitor, não subestime o absurdo da existência. Num mundo onde um barbeiro de Daca ouve José Cid para sobreviver à nostalgia alheia, há esperança. Porque, no fundo, todos somos um pouco como esses cabelos cortados: caímos no chão, misturamo-nos com os de outros, e, sem querer, viramos parte de uma colcha de retalhos imprevisível. E isso, vá lá, até tem a sua beleza — mesmo que seja do tipo “faz-se o que se pode, não o que se quer”.