Domingo,Novembro 24, 2024
13.1 C
Castelo Branco

- Publicidade -

A Força da Alegria Africana: breve introdução à presença da música africana em Portugal

A recente partida de duas figuras ligadas às culturas africana e portuguesa, Fausto Bordalo Dias e Mário Rui, levou-me a traçar algumas linhas sobre a presença da arte negra em Portugal, designadamente no campo da música e da dança, matéria onde ambos mais investigaram, como historiadores e/ ou músicos. Sublinhe-se que um movimento entre os professores de História das nossas escolas insiste no sentido de existir uma nova abordagem da influência da presença africana nos manuais escolares.

Foto: DR

É evidente que os séculos de relações históricas entre os dois povos se refletiu na evolução cultural dos dois países, não apenas na música, mas também no cinema, artes plásticas ou teatro, veja-se o roteiro promovido desde 2016 pela associação Batoto Yetu Portugal, designado “Espaços da Presença Africana em Lisboa”, onde nem a gastronomia é esquecida. Disso é bom exemplo a estação de metro do Parque, dedicada à Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Expansão e Descobrimentos Portugueses, concebida por Françoise Schein e Federica Mata, onde se podem encontrar inúmeras referências à cultura e à presença africana em Portugal.

Foto: DR

Há aqui referências a esse tráfico transatlântico, iniciado em 1444, quando chegou a Lagos, no Algarve, o primeiro carregamento de escravizados, oriundos do Golfo da Guiné. Estes integraram-se na paisagem urbana portuguesa e faziam parte da arraia miúda ou os «pequenos», como lhes chamou o cronista Fernão Lopes. No entanto e de acordo com um anónimo Italiano conhecedor de Lisboa, distinguiam-se da população local por serem “descontraídos e alegres”.

Foto: DR

Lembremos que a riqueza sonora, acompanhada do movimento do corpo e da dança, e que exprimem a diversidade cultural do continente africano, são elementos milenares que são utilizados, não apenas em África, como forma de comunicação com os vivos e os mortos, mas também veículo poderoso para a resistência e a expressão de identidade. Em 2020 Vitor Belanciano editou o livro “Não dá para ficar parado”, onde a música afro-portuguesa é analisada na perspetiva da celebração, conflito e esperança. E as escolas de dança africana multiplicam-se pelo país.

Foto: DR

E a verdade é que foi através desses costumes, que contrastavam com o dia a dia dos portugueses, que os escravos obrigaram a que deixassem de ser meras forças de trabalho ou objetos exóticos para serem exibidos na corte.

A noticia mais antiga que envolve figuras de negros africanos e suas danças em Portugal é de 1451, nas festas realizadas de 13 a 25 de Outubro em Lisboa, em comemoração do casamento por procuração da Infanta D. Leonor. Esta permissão dada aos negros para alegremente se entregarem às suas danças nativas, em clima de festa em plena Lisboa, constituía uma promoção oficial, o que não impediu que uma resolução da Câmara Municipal de 27 de Novembro de 1469, que proibia a venda de vinho nas tabernas aos cativos, isto porque eles reuniam-se depois do trabalho em tabernas onde comiam, bebiam e cantavam.

Cerca de quarenta anos mais tarde D. João III expediu um alvará, pelo qual ordenava «que qualquer escravo que fosse achado jogando na corte ou na cidade de Lisboa qualquer jogo, fosse preso e açoitado ao pé do pelourinho, onde lhe dariam vinte açoites ou pagasse seu senhor 300 reais … quando não quisesse ser açoitado.»

E surge o fado, o tal estilo musical genuinamente português… mas que é exemplo da mestiçagem trazida pelos descobrimentos.

- Advertisement -

Várias razões terão contribuído para o nascimento do fado. Para além da morna cabo-verdiana, também a dança sevilhana fandango, ao encontrar-se em Lisboa, no século XVIII, com as danças fofa e lundu, vindas do Brasil, “viriam no século XIX a realizar sua síntese, passando da taberna às salas para virar canção fado”, segundo o autor brasileiro José Ramos Tinhorão.

Não sendo o momento para aprofundar esta controvérsia, a verdade é que tudo indica que da exaltação sagrada ou profana das danças de raizes africanas fofa e lundun, ao chegarem, no século XIX, às plantações de algodão no sul norte-americano, perante terríveis condições de trabalho, fizeram nascer o som sofrido dos blues. Em Portugal outras razões, também ligadas à amargura, terão contribuído para o fatalismo do fado.

Lembrando que também no Alentejo ainda agora se encontram claros vestígios da presença de escravos africanos, foi em Lisboa que gradualmente a população negra se foi integrando nas camadas pobres da cidade, habitando os mesmos bairros, não se estranhando que no campo da organização do lazer (festas, danças e cantos) o intercâmbio e influência entre brancos e negros fosse comum e intenso.

Neste contexto, a mais antiga informação sobre a existência de uma música e dança urbanas de negros em bairro de Lisboa , é a que revela a existência da fofa em Alfama em 1730. Significa dizer que essa dança já era cultivada nas ruas pelos negros de Alfama na primeira metade do século XVIII, provavelmente logo após ter sido introduzida em Portugal por marujos ou negros chegados do Brasil.

Muito mais haveria que contar – qual dos leitores saberá que, segundo a Associação Batoto Yetu Portugal que promove o referido roteiro africano em Lisboa, tudo indica ser de ascendência a africana a mítica fadista Maria Severa Onofriana? – mas vamos saltar para os anos 50, referindo alguns dos músicos que se fixaram em Portugal e influenciaram definitivamente o som da Nova Música Portuguesa, misturando ritmo com histórias verídicas ou efabulações, como griots que narram tradições e memórias do povo africano.

Foi no final dos anos 50, com a chegada a Lisboa de agrupamentos como N’gola Kizomba, Duo N’Gola e principalmente Duo Ouro Negro, que se iniciou a introdução de sons do mundo na base rítmica africana, com realce para Blackground, álbum lançado em 1971. Nos anos 60 e 70 coube a Rui Mingas, no âmbito da Casa dos Estudantes do Império, criar um grupo que, fundamentalmente, interpretava música de Angola, acolhendo pontualmente o Jazz. Outro músico angolano, Eduardo do Nascimento, saltou do anonimato para as páginas dos jornais ao ser escolhido para representar Portugal no Festival da Eurovisão. Posteriormente vieram para Portugal Waldemar Bastos, Bonga, Paulo Flores, Eduardo Paim, Rui Legot, Vum-Vum, Beto Kalulu e tantos outros. Agora temos as novas cenas oferecidas pela magia da Cachupa Psicadelica, o funaná misturado com punk e metal dos Scúru Fitchádu, Multiculturalismo de Fogo Fogo ou a fusão e tradição de Acácia Maior.

Como já aflorámos na crónica “Esta é a Nova Lisboa…”, ainda antes da independência das colónias foram inúmeras as colaborações de músicos e poetas africanos nos temas dos chamados Cantores de Abril, mas depois da revolução e até meados da década de 90, a música africana de protesto “ganha alforria”, na senda de Rui Mingas, Bonga, Teta Lando e do poeta cabo-verdiano Daniel Filipe, que colaborou com Luis Cilia, também nascido em terras de África.

Com os Buraka Som Sistema surge um som novo, Kuduro, que se baseia em temas tradicionais mas onde se juntam batidas breaks e funk, espalhando o seu som bem vincado e intenso pelo mundo, com letras que se caracterizam pela sua simplicidade e humor. Entretanto aparece o hip Hop, cadência musical que se tornou global como símbolo de resistência, também em Portugal, mas isso é outra história.

Sim, faltam muitos outros personagens, designadamente nas últimas décadas, mas de pouco serviria, agora, tentar elaborar listagem exaustiva. E quase nem referimos artistas de Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau ou São Tomé.

O tema da Música Africana em Portugal merece estudo aprofundado, estas foram apenas algumas linhas introdutórias.

Não perca esta e outras novidades! Subscreva a nossa newsletter e receba as notícias mais importantes da semana, nacionais e internacionais, diretamente no seu email. Fique sempre informado!

Partilhe nas redes sociais:
Joaquim Correia
Joaquim Correia
“É com prazer que passo a colaborar no jornal Regiões, até porque percebo que o conceito de “regiões” tem aqui um sentido abrangente e não meramente nacional, incluÍndo o resto do mundo. Será nessa perspectiva que tentarei contar algumas histórias.” Estudou em Portugal e Angola, onde também prestou Serviço Militar. Viveu 11 anos em Macau, ponto de partida para conhecer o Oriente. Licenciatura em Direito, tendo praticado advocacia Pós-Graduação em Ciências Documentais, tendo lecionado na Universidade de Macau. É autor de diversos trabalhos ligados à investigação, particularmente no campo musical

Destaques

- Publicidade -

Artigos do autor