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Férias na Figueira da Foz

Há lugares que nos marcam, seja pela lonjura ou proximidade temporal. Na Figueira da Foz, no Largo do Carvão n.º 5, existe uma casa que me acompanhou desde a infância até desaparecer, vivia eu no oriente. E havia uma janela onde o meu pai passava horas, rodeado de jornais, olhando a doca que se espalhava pelo Mondego de águas calmas e serenas. O “outro lado” deslumbrava-me pelas praias extensas, desertas, que se alcançavam a bordo do Luis Elvira, pequeno barco onde os banhistas mais afoitos rumavam à Gala, o “outro lado”.

Férias na Figueira da Foz
Foto: O Regiões

Com os meus onze anos o “outro lado” era uma aventura, onde das rochas saltava para as ondas do perfumado Atlantico, alternativa à urbana e requintada Praia do Relógio, que se estendia frente da loja onde o pai do ciclista Alves Barbosa alugava bicicletas, por baixo da piscina do Grande Hotel.

Foto: O Regiões

Daquela janela ele recordava os seus tempos de Coimbra, apenas se levantava para dar corda ao antigo relógio que o avô Pinheiro comprara em algum leilão, com as economias da Casa das Meias, que se entrevia, lá em baixo, da janela do corredor, no beco que se estende até à Praça Nova. Ainda me lembro do barulho das pesadas cortinas que diariamente eram corridas ao fim da tarde e de manhã.

Foto: O Regiões

Pela janela entrava o som da sirene que chamava os bombeiros voluntários, que depois desciam a rua do Paço num frenesim a caminho do desastre ou do incêndio, tantas vezes na Serra da Boa Viagem, que nos anos noventa quase desapareceu, tragada por chamas que eu acompanhei de longe. De Buarcos subia-se a Serra e descia-se para Quiaios, vila de saborosas e compridas linguiças e fascinantes lagoas.

À noite, intervalando com os jogos da “Briosa”, o fogo seria comentado no Pátio das Galinhas, na mesa do canto junto à entrada para o casino, onde se juntavam casais amigos de meus pais, enquanto eu deambulava pelo Bairro Novo, entre linguajares de Espanha, Coimbra e do Norte do país. E admirava a barulhenta alegria de rapazes e raparigas espanhóis, que se reuniam em frente ao Turismo, na chamada Varanda da Figueira. Lá ao fundo, as brancas ondas alagavam a areia quase até às barracas, ao fim da tarde desmontadas pelos banheiros. O nosso era o Sr. António.

Pelas dez da manhã, com a minha mãe eu subia a Rua 5 de Outubro, passava ao lado das lojas de roupa e tecidos de meus tios e relojoarias com venda de prata antiga. Antes de atravessar o jardim ela comprava o jornal na papelaria (não lembro o nome mas recordo que tinha uma senhora mal encarada mas que vendia, clandestinamente, o Avante), rladeava as bancas do mercado e subia para a Praia de Relógio. Meu pai ia de carro com a minha avó e esperavam-nos na barraca. Por vezes já o meu irmão travava duelos futebolísticos com jovens espanhóis, no areal antes das barracas e toldos, enquanto eu descansava das ondas gigantes admirando, numa mistura de estranheza e atração, o Catitinha, que em largas passadas sulcava a areia com as suas longas barbas e troante apito preso nos dentes. E não perdia as historietas que, na barraca sem teto, as marionetas contavam em aguçada ou austera voz, consoante o personagem, enquanto a colher de pau zarpava nas cabeças dos divertidos bonecos “Toma! Toma! Vai-te daqui malandro!”. E vendiam-se batatas fritas, bolos de coco e pichas, deliciosos minúsculos camarões pescados no Cabo Mondego.

A casa era um casarão de dois andares e sótão, onde não subia sozinho, temeroso dum ser que por lá andaria entre antigas malas e outra tralha… principalmente quando, já escuro, até a ida à minúscula casa de banho situada frente às escadas para o indefinido desconhecido era difícil vencer. Nem a companhia do Fortunato (o meu primeiro verdadeiro amigo) ajudava, ele absorvera os meus infantis receios!

Ao fim da tarde, no jardim Municipal, acelerava nos carrinhos de pedais e enquanto contornava o coreto sentia as pombas aplaudirem a velocidade, direito ao pequeno lago onde patos farfalhavam as coloridas penas. Por vezes havia gincanas de bicicleta e corridas de sacos na Esplanada Silva Guimarães, por cima do restaurante Tubarão. E garraiadas na Praça de Touros e carroceis e carrinhos de choque na Rua Cândido dos Reis, ao lado do Parque Cine.

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No princípio do mês carregávamos o Fiat 600 que nos levaria de Lisboa à Figueira, com sorte sem furos pelo caminho. Agosto era imenso, calmo e vagaroso, havia tempo para tudo.

Os anos foram passando, a minha mãe trocou os encontros com as amigas do Ginásio Figueirense pelas conversas na Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra em Luanda ou na praia da ilha, o meu pai as tertúlias com “malta” de Coimbra para outra “malta” da mesma cidade estudantil, vários deles exilados em Angola como Felisberto Lemos, o Livreiro da Esperança de Manuel Alegre. Eu também andei por essas terras quentes e ritmadas, “cantando e rindo” com amigos que ficaram para sempre.

Pelo casarão foram passando filhos, sobrinhos e netos nas poucas vezes que abdicavam do Algarve, que as águas quentes e moles do Sul já atraiam os mais jovens, até que foi vendido e as salas transformadas em escritórios. A Praia da Claridade foi gradualmente substituída pelo “Allgarve”.

A Figueira no verão mantém-se alegre e à noite as ruas enchem-se de forasteiros. No Casino há programa para todos os gostos, come-se bom peixe e marisco e os gelados da Emanha continuam fabulosos. Por vezes vou a Buarcos deliciar-me no Teimoso, mas já não é a mesma coisa…

A janela, essa continua virada para a doca.

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Joaquim Correia
Joaquim Correia
“É com prazer que passo a colaborar no jornal Regiões, até porque percebo que o conceito de “regiões” tem aqui um sentido abrangente e não meramente nacional, incluÍndo o resto do mundo. Será nessa perspectiva que tentarei contar algumas histórias.” Estudou em Portugal e Angola, onde também prestou Serviço Militar. Viveu 11 anos em Macau, ponto de partida para conhecer o Oriente. Licenciatura em Direito, tendo praticado advocacia Pós-Graduação em Ciências Documentais, tendo lecionado na Universidade de Macau. É autor de diversos trabalhos ligados à investigação, particularmente no campo musical

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