No desporto ganha-se ou perde-se, nem que seja competindo com nós próprios. Conseguir um objetivo traz alegria e mesmo felicidade, perder traz desilusão e tristeza. E essa dúvida sobre o resultado acarreta ansiedade.
Na alta competição, como são os jogos olímpicos, essa incerteza do resultado não ajuda à concentração e relaxamento, elementos essenciais para o atleta alcançar a vitória.
O mesmo se passa em qualquer atividade humana onde a ansiedade não sirva como proteção natural, quando a descarga de adrenalina alerta para situações de risco, aumentando as probabilidades de sobrevivência caso seja necessário fugir.
Estas linhas surgiram após saber da história do turco Yusuf Dikec, atirador de tiro ao alvo com pistola, cuja postura calma e desprendida como praticou o tiro nos recentes Jogos Olímpicos foi muito comentada. Parecia estar concentrado mas descontraído, sem tensão interior, como se não se tratasse de lutar por uma medalha olímpica, que não lhe fugiu. Não era isso que se passava, como explicou, mas apenas a emoção que queria transparecer, enquanto interiormente “explodiam trovões, o meu corpo era uma tempestade”. Não usava óculos nem sapatos especiais: “tenho coração puro, sou um atirador nato… e a minha aparência cool deixa os meus oponentes nervosos”. Será a autoconfiança e segurança, nem que seja pela racionalização e controlo das emoções, o segredo para a vitória?
Quando o arqueiro faz tiro ao alvo,
Sem nenhum objetivo,
Emprega toda a sua perícia.
Mas se o objetivo
É ganhar um prémio qualquer,
Nem que seja uma taça sem valor,
Fica nervoso.
…
Preocupa-se.
Pensa mais em ganhar que em atirar.
E a necessidade de ganhar
Impede-o de usar
Toda a sua perícia.
Zen e a Arte do Tiro com Arco, de Eugen Herrigel
Não estava sereno, sem preocupações nem medos, apenas parecia estar. Equilíbrio é estar sereno, não é parecer sereno. Mas quem tiver a arte de transformar “tempestade interior” em aparente descontração, isso ajuda a alcançar atitudes equilibradas.
Lembro-me de um livro escrito por um psicólogo (não me lembro do nome do autor), que narra a sua viagem em busca do segredo da felicidade. Não era mais um exemplo de auto-ajuda, panaceia miraculosa de supermercado, antes procedia ao levantamento de algumas respostas filosóficas, cientificas, religiosas ou mesmo de quem não procura caminhos, apenas vive o dia a dia, sem aspirações. A resposta encontrou-a numa citação do escritor Lobo Antunes: A felicidade não passa por nada disso, pelo sucesso, pela fama. Passa por uma paz interior que eu ainda não encontrei.
A felicidade passa pela serenidade? Tranquilidade; calma; sangue-frio; imperturbabilidade?
Para o Budismo, o caminho é o desapego, não depender de nada, viver intensamente o momento, mas quando passa acabou, apenas deixando um rasto que aumente o nosso conhecimento. Não deixar que a ambição nos domine. Meditar não é indiferença ou apatia, apenas não permitir que sentimentos interiores condicionem o nosso comportamento. Com desapego não há sofrimento, apenas resta a dor física, que deve ser aceite caso seja impossível vencer.
No ioga, o relaxamento do corpo também é ajudado pela meditação (sentir e fixar a atenção na respiração, concentrar-se exclusivamente numa figura ou imagem, deixar os pensamentos fluirem como nuvens levadas pelo vento), aprendendo a viver o presente. A descontração do corpo, sentir-se pesado e calmo, ajuda a libertar a mente e não sofrer por antecipação.
É essa a solução da filosofia oriental para a felicidade, que por vezes se confunde com religião, nem sempre compreensível para um ocidental. Encontrar a serenidade pelo treino para o desapego pode ser um caminho, embora esse pragmatismo possa contribuir para cairmos no egoísmo, não amarmos verdadeiramente nada nem ninguém e até num certo conformismo, desistindo de mudar o que está mal na sociedade ou em nós.
E para o ocidente, o que é felicidade? Saúde, amor e estabilidade financeira?
A ideia de felicidade não é uma aspiração recente. Ela faz parte das primeiras reflexões filosóficas sobre ética, que foram elaboradas na Grécia antiga. A referência filosófica mais antiga de que se dispõe sobre o tema é um fragmento de um texto de Tales de Mileto. Segundo ele, é feliz “quem tem corpo são e forte, boa sorte e alma bem formada”. Platão considerava que todas as coisas têm a sua função, cabendo à alma ser virtuosa e justa. Aristóteles conclui que a maior virtude da nossa “alma racional” é o exercício do pensamento através da política. Epicuro realça a importância do prazer (hedonismo), com Kant, mais tarde, a considerar que a felicidade se coloca no âmbito do prazer e do desejo, nada tem a ver com a Ética e, portanto, não é um tema que interesse à investigação filosófica. Russell conclui que a felicidade é a eliminação do egocentrismo.
Com o fim do mundo helénico e o advento da Idade Média, a felicidade desapareceu do horizonte da filosofia. Para as teorias cristãs, mais do que a felicidade, o que conta é a salvação da alma, através da oração e da prática do bem, ou mesmo pelo sofrimento virtuoso.
Acreditando na reencarnação, as soluções orientais também passam pela aceitação de um ente ou valor superior, a quem devemos orar e agradecer a vida, embora o caminho, como referi, seja menos pelos penitência e mais pela utilização de técnicas e treino diário.
Com estas despretensiosas cogitações não procurei dar respostas, apenas discorrer sobre um comportamento que achei curioso. Mas a minha formação profana leva-me a preferir a imagem do Buda Sorridente que a do Cristo pregado na cruz…