O coração, dizem os manuais de anatomia menos lidos, é um músculo estúpido: trabalha sem ser pago, sofre sem razão e pára sem aviso. André Ventura, pelo visto, possui um exemplar particularmente teatral. Esta terça-feira interrompeu a epopeia eleitoral por conta de uma “indisposição”. Tradução: o coração e o estômago não aguentaram o peso do protagonismo — ou do espelho.
O episódio foi digno de uma ópera bufa. Bastaram vinte minutos após a entrada no hospital de Faro para que a maquinaria conspirativa do Chega! desse sinais de vida mais intensos do que o próprio paciente. As redes sociais fervilharam com a precisão de um caldeirão de alquimia medieval: suspeitava-se de envenenamento por toxina wokista, de ataque electromagnético via torre 5G da UNITA, e de sabotagem cardíaca-intestinal perpetrada por agentes disfarçados de enfermeiros do SNS — uma corporação que, segundo os iluminados do partido, é o braço sanitário do marxismo cultural.
Ventura entrou quase de maca, mas voltou de pé. E, como todos os líderes que experimentam uma leve aproximação ao além (mesmo que por cansaço e não por martírio), regressou com ares de quem cruzou o Estige e venceu. O histórico é generoso para estes casos. Em 1975, Gerald Ford caiu de uma escada de avião e ganhou dois pontos nas sondagens. Bolsonaro levou uma facada e ascendeu ao panteão do populismo com uma bolsa de colostomia e uma retórica redentora. Mesmo Sá Carneiro, ainda que tragicamente, é tratado como santo político por explodir em pleno voo — o que, sejamos honestos, é mais carismático do que perder uma eleição por pouco.
A política adora o doente que ressurge. O eleitor português, com a sua apetência por figuras trágico-messiânicas, não resiste a um candidato que “quase” morreu. Quase.Uma paulada na Marinha Grande no tipo ao lado da vítima serve. É o quase que conta. Morreu mesmo? Azar. Sobreviveu por um triz? Milagre.
Mas Ventura, ao contrário dos outros, não soube tirar pleno proveito do seu episódio esófago-cardíaco. Falta-lhe o sentido teatral do absurdo. Poderia ter saído do hospital de óculos escuros, acompanhado por um cardiologista que cita Clausewitz. Poderia ter jurado que “sentiu o toque da História” no peito. Em vez disso, regressou como quem teve gases a fazer vídeos no Instagram.
E é neste cenário de maleitas políticas que entra o Almirante Seringa. Sim, esse. O mesmo que distribuiu vacinas como se fossem medalhas e agora decidiu que, tendo ordenado a fila dos idosos, pode muito bem ordenar o país. Candidato a Presidente da República — e porquê? Porque, numa campanha onde até o estômago e a bílis do Ventura resolveu dar de si, o ego do Almirante sentiu-se compelido a competir.
Dizia um velho tratado florentino, apócrifo, mas delicioso, que “quando os generais se apaixonam por microfones, os impérios desmoronam-se em monólogos”. O Almirante, possivelmente picado pela febre mediática de 2021, confundiu logística com liderança e planificação de seringas com estratégia de Estado. Aconselha-se, pois, ao herói vacinal, a regressar ao seu submarino de estimação — aquele mesmo que o Estado comprou e esconde, como quem tem vergonha de uma compra inútil — e reaparecer lá para Dezembro. Pode trazer bolos.
Claro que talvez isto tudo — o susto de Ventura, as teorias da conspiração, os delírios de grandeza do Almirantado Nacional — seja apenas um sintoma. Não do corpo dos candidatos, mas da psique colectiva. Talvez sejamos nós, eleitores, quem sofre de hipertensão crónica provocada por excesso de comícios, sal eleitoral e gordura ideológica saturada.
Ou então, e isto é mais assustador, talvez estejamos sãos.
E o problema seja mesmo eles.