Dizem que a coerência é uma qualidade sobrevalorizada. Eu discordo. Prefiro pensar nela como se fosse um aparelho auditivo para quem se aventura a jogar xadrez com a avó surda — ou seja, é o mínimo para fingir que há jogo.
O Bloco de Esquerda, sempre pronto a pintar-se de causas, surge em cena com lenços a lembrar Arafat ao pescoço e discursos sobre a opressão patriarcal na ponta da língua. Nada de novo até aqui. A estética revolucionária sempre teve queda para o guarda-roupa. O problema? É que, enquanto citam Simone de Beauvoir em audições parlamentares, ostentam o panfleto visual de movimentos que, segundo a Sharia, veriam a própria Beauvoir como uma herege ocidental merecedora de reeducação — no mínimo. Dissonância cognitiva? Não. É arte performativa, com ligeiras notas de esquizopolítica.
Imagine-se um feminismo de exportação que combate o machismo do patriarcado ocidental… alinhando-se com forças que tratam mulheres como património familiar. É uma espécie de alquimia moral, onde os princípios se dissolvem em ácido simbólico. Não é incoerência, é fusão nuclear de causas. Chamemos-lhe “feminolência”: a nova tendência de alinhar a luta das mulheres com qualquer ideologia… desde que esteja suficientemente longe para não se perceber bem o que defende.
E ainda há quem pergunte por que é que os minimamente politizados andam à deriva.
Portugal, claro, contribui com o seu habitual génio para a sinfonia do absurdo. Não reconhece a Palestina como Estado, mas defende a sua existência na ONU com uma convicção mais escorregadia que sabonete de hotel. Quer dois Estados, mas só tem coragem para dizer o nome de um. É como pedir bifes para dois e só pagar um — esperando que a diplomacia internacional feche os olhos e partilhe a travessa.
Mas não fiquemos pelo Levante. Saltamos para Kiev com igual elegância circense. Por cá, o Governo põe bandeiras ucranianas nas janelas e palmas no ar sempre que Zelensky aparece nos ecrãs. Mas depois envia imigrantes ucranianos de volta para o campo de batalha com a mesma naturalidade com que se devolvem meias rasgadas numa loja de bairro. Há nisto uma estética da vergonha: ajudar de longe, expulsar de perto, e lavar as mãos com álcool-gel democrático.
Não é hipocrisia. É pragmatismo desidratado. A diplomacia portuguesa, essa velha senhora que se desloca de pantufas pelos corredores das chancelarias, sempre foi uma espécie de
funâmbula em coma ligeiro. António Costa, que chegou a fazer turismo penitenciário para se lembrar de que Sócrates ainda existia, abandonou o presídio como se tivesse tropeçado num cadáver político em estado de putrefacção moral. E talvez tenha mesmo tropeçado. Mas é claro que ninguém viu nada — Portugal é especialista em não ver o que está à frente.
Como dizia José Gil, Portugal não se inscreve. Corrijo: Portugal escreve-se a lápis e apaga-se com saliva.
E agora, com as eleições de 18 de Maio, surge-nos a promessa de mudança, como um eco longínquo de um hino nunca composto. Os cartazes multiplicam-se, os debates brotam como fungos em paredes húmidas, e as previsões apontam para um resultado digno de aguarela: “águas de bacalhau”. Sem sabor, sem cor definida, mas muito típicas. A continuidade não é uma opção — é um sistema operativo.
E talvez, no fim, seja isso que o povo mais aprecia: não decidir. Porque decidir cansa. E formar opinião, então, é um desporto radical sem rede. O português médio — essa criatura mística entre a apatia e o sarcasmo — prefere manter-se na ambiguidade funcional. Não se trata de ignorância. É uma estratégia de sobrevivência. Como quem diz: “Sim, apoio as mulheres, claro. Desde que elas não me obriguem a pensar na Palestina.”
E é aqui que a crónica termina, ou talvez comece. Porque, entre feminismos importados, diplomacias de gelatina e expulsões humanitárias, resta-nos uma certeza frágil: Talvez a única coerência portuguesa seja esta — uma incoerência tão constante que se torna tradição.